2023/11/16 – selecção de TAF:
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2023/11/16 – selecção de TAF:
O projecto de reabilitação do Jardim da Praça da República, como qualquer outra intervenção na cidade, não reúne unanimidade, o que é normal porque a falta de consenso e a divergência de pontos de vista é um sinal de saúde cívica e de envolvimento da população nas pequenas questões da cidade. Se alguma coisa a pandemia Covid-19 demonstrou é que as interações sociais desempenham um papel profundamente estrutural no desenvolvimento psicossocial e na manutenção do bem-estar emocional dos indivíduos. Os largos meses de isolamento social demonstraram o quão valioso é o espaço público em ambientes urbanos. Os jardins, as praças e as ruas, sobretudo aquelas que são arborizadas, são o território comum da comunidade. A determinado momento, no rescaldo da pandemia, na euforia possível de quem chegou mais ou menos ileso ao fim do arco-íris, alimentou-se a expectativa de que passaríamos a olhar de forma diferente para estes espaços, que as ruas seriam humanizadas e devolvidas à comunidade. No Porto, ensaiaram-se experiências muito interessantes como o encerramento aos domingos do trânsito na Avenida Rodrigues de Freitas para permitir a sua apropriação pelas famílias, vizinhos e crianças. Os mais optimistas poderiam até julgar que estávamos num ponto de viragem nos modos de se fazer cidade. Só que, uma vez passado o alívio inicial, uma vez ultrapassada a fase do «nada será como antes», a cidade nova acabou por não vir. Enterrámos a experiência traumática da pandemia e com ela todas as lições juntamente com as boas intenções. Digo isto porque este projecto foi uma oportunidade perdida de envolvimento da população. Ninguém questionou os utentes, vizinhos e a comunidade local sobre o que queriam daquele jardim. A intervenção sobre o espaço público não deveria ocorrer sem o envolvimento da população e dos principais interessados. Era possível compatibilizar as especificidades técnicas do projecto com um modelo participativo. Creio que ancorar todo um projecto de um jardim público na memória histórica sobre o exercício do poder institucional (político e militar), deixando de parte as expectativas e os desejos da comunidade, só quer dizer que os decisores esqueceram muito rapidamente a importância que os espaços verdes urbanos ganharam pela nossa experiência recente. Creio que será mais ou menos óbvio afirmar que os utilizadores daquele jardim prefeririam um espaço comum que fosse pensado nas suas necessidades e não tanto numa reconstituição da geometria gerada pelos exercícios militares que lá ocorreram no passado.
Recomendo que assistam à reunião do executivo do passado dia 6 de novembro, onde a partir da hora 01:03 a arquitecta paisagista Teresa Marques apresenta o projecto e responde às questões dos vereadores. Retiro aspectos positivos:
No entanto, analisando criticamente a solução proposta, encontramos vários pontos de flagrante fragilidade. As praças-jardim devem conciliar três grandes funções:
Deixemos de parte a primeira função porque parece estar assegurada (não obstante, seria útil se tivessem divulgado quais as espécies selecionadas e o plano de manutenção dos espaços verdes) e passemos diretamente aos pontos seguintes.
A função social da Praça da República é comprometida pela premissa inicial que não a assume como um local para se estar, como um lugar onde se desenvolvem várias atividades em simultâneo e que poderiam potenciar o encontro entre gerações, entre residentes e visitantes, entre diferentes classes. A praça é desenhada como um espaço que serve apenas para ser atravessado. Não é um sítio de paragem. Isso é perfeitamente óbvio pela profusão de caminhos que rasgam a praça de norte a sul, de leste a oeste e que duplicam as diagonais com uma espécie de sub-diagonais de utilidade pouco evidente.
O que se pretende é muito claro: a praça, tal como o vereador Filipe Araújo muito bem sintetiza, é um atravessamento. Talvez por essa razão também se limitaram as condições para que ali possa acontecer alguma coisa. Os bancos de jardim com costas são manifestamente insuficientes. Um murete de granito não é digno, não é confortável, não convida à permanência. Este jardim não é para velhos (a coesão social também passa por aqui, certo?). Nem para os sem-abrigo. Segundo a mesma lógica, não se criaram condições para o convívio. Não vejo por que razão não poderá haver mesas para as épicas suecadas dos reformados ou para se fazer um lanche. Particularmente chocante é a ausência de um parque infantil, sendo que a resposta da projectista a esta questão é demasiado absurda para se levar a sério:
“Os miúdos poderem saltar dos muretes para o chão, dar cambalhotas, correr. Não delimitar. A brincadeira aqui pode ser mais livre e espontânea, em condições de segurança.”
Não há um parque infantil porque o objectivo é toda a praça funcionar como um parque de brincadeiras? O Porto não é para velhos e, pelos vistos, também não é para crianças. Em todo o município há uma enorme carência deste tipo de equipamentos, mas na zona mais central essa falta é ainda mais gritante. Os poucos que existem são pequenos, de má qualidade e sobrevivem quase sem manutenção. Veja-se, por exemplo, o pequeno parque infantil Soares dos Reis, no Bonfim. Apesar de pequeno e deteriorado por falta de manutenção, está sempre cheio, juntando no seu entorno jovens casais, avós e crianças do bairro. O poder de atração deste tipo de espaços é enorme e funciona como um equipamento âncora, convidando à permanência, ao convívio e ao desenvolvimentos de laços de confiança e solidariedade entre vizinhos. Não são os jardins, por si, que fazem isto, mas os equipamentos que lá se colocam. Dizer que todo o jardim será um parque infantil, é a mesma coisa que dizer que não há parque infantil.
Quanto mais diversificadas forem as atividades dentro de uma praça-jardim, melhor desempenhará a sua função social. No entanto, não está previsto, por exemplo, um espaço de esplanada. Não haveria sequer necessidade de se edificar uma cafetaria porque essa função pode ser perfeitamente desempenhada por estruturas móveis de street food, desde que duas condições estivessem asseguradas: espaço para esplanada e instalações sanitárias. Não deixa de ser surpreendente que nenhum vereador tenha questionado a ausência de instalações sanitárias públicas. Em abono da verdade, temos de reconhecer que também não fazem falta se a ideia é fazer da praça um sítio de passagem.
Do ponto de vista da função urbana, julgo encontrar aspectos positivos na proposta. Digo “julgo” porque este aspecto nem foi abordado na apresentação feita pela arquitecta paisagista e nem tão pouco foi questionado pelos vereadores. A apreciação possível é feita através dos renders disponibilizados. Assim, destaco:
Estes três elementos (mais passadeiras, arranjo da moldura urbana da praça e prolongamento da arborização pelas vias que dela derivam) são fundamentais para a boa ancoragem da praça na estrutura urbana da cidade. A arborização das ruas adjacentes, por exemplo, prolonga o efeito de jardim com todos os ganhos a nível do bem-estar e do conforto, funcionando ainda como um fio de Ariadne marcando o caminho até à praça. Já o alargamento e arborização dos passeios do lado das frentes edificadas que emolduram a praça, potenciam a instalação de um conjunto de serviços complementares, como restauração e esplanadas. Desejaríamos todos nós, no entanto, que a função habitacional fosse, de alguma forma, privilegiada. Alguém na sessão de apresentação levantou a questão da segurança. Pois bem, a melhor forma de tornar os espaços seguros é pôr lá pessoas. Pessoas que usem efectivamente o jardim, pessoas que possam estar, por mero acaso, nas esplanadas, mas sobretudo pessoas que habitem os prédios que emolduram a praça, que sejam os olhos permanentemente sobre o espaço público e que o tomem, de certo modo, como o prolongamento da sua própria casa.
Persiste, ainda, uma dúvida sobre a questão do trânsito e esta dúvida não é um pormenor porque tem um carácter decisivo. Não é claro o que se pretende para o trânsito que por ali passa. A manter o actual perfil de três (e até quatro!) vias com tráfego intenso e a velocidade excessiva, a praça continuará a ser uma ilha. Podem acrescentar mais duas passadeiras, mas o atravessamento continuará a ser inseguro e desconfortável. Continuará a cortar a relação da praça com a frente urbana envolvente, comprometendo os aspectos positivos acima mencionados. Seria desejável reperfilar as vias de forma a induzir a redução de velocidade e limitar a velocidade de forma drástica. Recentemente, a CMP implementou em várias artérias do Centro Histórico a regra dos 20km como limite máximo de velocidade. Em muitas destas artérias, a medida é redundante porque pela sua configuração e características nem sequer é possível atingir tal limite. É como declarar que água do Douro é húmida ou salgada a água do mar da Foz do Porto. Esse tipo de medidas, como a limitação de velocidade a 20km e, eventualmente, a criação de zonas de coexistência de tráfego, seria relevante em situações como a da Praça da República. Se não for este caminho, então para que servem todos os atravessamentos que retalham o jardim? Facilita-se o atravessamento dentro do jardim para chegar onde? Esta incongruência, quanto a mim, compromete decisivamente o projecto. Se não se encarar com coragem a questão do trânsito, isto significa que vamos gastar 1.5 milhões de euros numa ilha no meio do trânsito.
PS: Sobre este tema, à vereadora Rosário Gâmboa apenas lhe ocorreu levantar a questão bizantina da “centralidade da palmeira”. Fico decepcionado e embaraçado. Oposição crítica precisa-se.
Que coisa mais total e absolutamente “inconseguida”!
Hoje fiquei impressionado com esta zona. Os espaços são completamente desumanizados. E desleixados. Áreas públicas disponíveis mas sem propósito, sem uso, sem esmero na gestão. E, separada pelo vidro, gente encaixotada a trabalhar no call center. Acho que também há ali uma residência universitária. Se há, os estudantes estão escondidos. Quem desenhou isto (não sei quem foi) não percebeu que as distâncias são grandes demais para fomentar o convívio, que praças interiores tão despidas não fomentam vida de cidade. Nem explicou aos donos da obra, se calhar, que é fundamental manutenção e vigilância permanentes.
Estive hoje neste seminário promovido pela Câmara do Porto. Salão cheio na Alfândega. Foi tudo bastante acima das minhas expectativas, quer as apresentações/debates, quer aparentemente o plano em si, ao qual ainda só dei uma vista de olhos. Foi lá sublinhado pelos autores do plano que dele constam actividades que já estão a decorrer, ou seja, isto não é apenas um conjunto de projectos que ainda vão ser implantados. A versão completa está aqui, no site da Coesão Social da CMP.
Esta manhã, 8h20, plena hora de ponta. Trânsito totalmente interrompido para descarregar contentores do lixo.
Esta imagem do cruzamento da Rua Escura com a Rua da Bainharia nos anos 80, do Arquivo Municipal do Porto e publicada nesta notícia do Porto Canal, é extraordinária pelo contraste com a situação actual. Tinha vida, tinha pobreza, tinha trabalho, tinha Porto e portuenses. Um mercado que funcionava.
Mas o que se vai seguir à demolição do actual Mercado (disfuncional) de São Sebastião, lá perto, tem muito que se lhe diga. Vale a pena seguir o assunto e intervir. Aliás, o Porto Canal foca hoje isso:
Por uma publicação antiga da CP, impressa por ocasião do Centenário da ponte Maria Pia sobre o Douro (1877-1977), fiquei a saber que “A ponte chamou-se D. Fernando, o rei Artista, até à inauguração, altura em que a rainha autorizou a que lhe fosse dado o seu nome — Maria Pia.”
“Do livro «Apontamentos para a História dos Caminhos de Ferro Portugueses», de Frederico Pimentel, publicado em 1892, transcreve-se:
«Ainda antes do começo dos trabalhos para a construção das linhas férreas a norte do rio Douro, já o Governo tinha intimado a Companhia Real dos Caminhos de Ferro a completar a linha do Norte até ao seu término, no Porto, em conformidade com a lei de 1866. A Companhia apresentou uma solução que tornando muito menos extensa a ligação das Devezas com o Porto, dava também boa inscrição para as linhas do Minho e Douro. A directriz que foi escolhida e aprovada vence o Douro onde as suas margens são as mais escarpadas e o vale mais profundo, abrigando a trabalhos muito importantes tanto numa como noutra margem, sendo a ponte de Maria Pia uma das concepções mais arrojadas em construções desta ordem.
A altura do tabuleiro desta tão notável como elegante obra d’arte moderna é, sobre a maior baixa-mar, de 61,30 m e a sua extensão total, incluindo os viadutos marginais, é de 352,875 m, tendo o arco central 160,00 m de corda e 37,5 m de flecha. O projecto desta gigantesca obra de ferro foi apresentado pelo Engenheiro Eiffel no concurso que para este trabalho se abriu entre as principais casas construtoras de França. A construção desta obra começou em 5 de Janeiro de 1876 e terminou em 28 de Outubro de 1877.
É assombrosa a rapidez e precisão com que foram executados tão importantes como difíceis e delicados trabalhos. O elegante arco da ponte Maria Pia, o maior do mundo de então, foi construído sem recorrer aos andaimes, que se julgavam se não impossíveis pelo menos quase que impraticáveis e perigosos. O novo traçado obrigou ainda à construção de 3 túneis, sendo de 202,20 m de extensão o da Serra do Pilar, de 113,50 m o do Seminário e de 77,25 m o da Quinta da China, além de um viaduto aquém da estação de Gaia, de 109,00 m de extensão, formado de 5 arcos de 12,00 m de luz cada um, tendo 23,00 m de altura máxima.»
A ponte chamou-se D. Fernando, o rei Artista, até à inauguração, altura em que a rainha autorizou a que lhe fosse dado o seu nome — Maria Pia.
O comboio inaugural, por alvitre do rei D. Luís, não transportou toda a família real, pelo que após a chegada a Campanhã regressou ao ponto de partida, a entrada da ponte, para transportar o príncipe real, os infantes e outros convidados. O comboio real era formado por vários salões, dois dos quais, o de Maria Pia e o do Príncipe, ainda podem circular. São os mais antigos existentes em Portugal, sendo de 1858 o primeiro, que foi oferecido, em 1862, pelo Pai da então princesa Maria Pia, o rei Humberto de Itália. O salão do Príncipe é de 1877. Existe ainda, e devidamente resguardada, a locomotiva que rebocou o comboio real. Trata-se de uma valiosa peça de Museu.
O «Diário do Governo» de 6 de Novembro de 1877 referiu-se ao acontecimento, por ter tido a presença da família real, nos seguintes termos:
«Porto, 4 de Novembro, às nove horas e vinte e cinco minutos da tarde.
Ex.mo presidente do conselho de ministros. — Lisboa.
Suas Magestades e Altezas continuam sem novidade em sua importante saúde.
Às duas horas teve lugar a inauguração da ponte sobre o Douro, sendo Suas Magestades recebidas com as maiores demonstrações de regosijo. Era enorme o concurso de espectadores, que todos festejaram Suas Magestades com entusiásticas saudações. Depois do lunch na estação de Campanhã, onde os brindes a Suas Magestades foram calorosamente correspondidos, seguiram Suas Magestades para o paço, e agora que são oito horas da noite vão assistir à inauguração da iluminação da ponte. —(L. S.)=O governador civil, Agostinho da Rocha.»“
Sábado realiza-se no Auditório da Junta de Freguesia de Campanhã um Fórum Climático. De vizinhos para vizinhos. Parte da convicção que as cadeias de valor devem ser locais e de proximidade. E que todos tem algo a acrescentar ou a até a diminuir. Dirige-se especialmente a optimistas do futuro. Não é contra nada, nem contra ninguém, por isso estão todos convidados.
1. Overtourism
Devem ser raros os conceitos com certidão de nascimento e paternidade conhecidas. Pelo menos, é o que o CEO da Skift alega quando se refere a Overtourism. Rafat Ali não se cansa de reclamar a autoria do conceito e até garante que foi a 14 de junho de 2016 que o terá dado à luz. É uma reivindicação que tem sido muito contestada e googlando o termo é possível encontrá-lo, aqui e ali, em datas bem anteriores. Independentemente de quem terá cunhado a palavra, algo absolutamente acessório (a não ser que lideres uma publicação, com aspirações, dedicada ao turismo como é o caso de Rafat Ali), a verdade é que terá sido a partir da publicação de um artigo na Skift sobre os excessos do turismo na Islândia (já agora, recomendo também este pequeno artigo, mais recente, sobre o caso de Lisboa), que o conceito ganhou asas e se tornou viral. Foi adoptado pela comunicação social, nas redes sociais evoluiu para ideia-meme, a academia deixou-se seduzir produzindo vários km de teoria inspirada por este e em 2018 Overtourism é uma das palavras no ano para os dicionários de referência Oxford Dictionary e Collins Dictionary. Nesse mesmo ano, a Organização Mundial do Turismo das Nações Unidas (UNWTO) publicou o importante relatório ‘Overtourism’? – Understanding and Managing Urban Tourism Growth beyond Perceptions (não deixando de fazer a devida vénia à Skift que terá criado e registado o conceito!). Era óbvio que tocava num ponto sensível para as sociedades contemporâneas e é fácil de perceber porquê: o trânsito, em 2019, de 1466 milhões de turistas internacionais à escala global, aos quais devemos juntar ainda os turistas internos, não pode deixar de ter consequências. Esta é, de facto, a Era do Turismo.
No relatório da UNWTO referido no parágrafo anterior, Overtourism é definido como:
impacto do turismo num destino, ou partes dele, que influencia excessivamente a qualidade de vida percepcionada dos cidadãos e/ou a qualidade das experiências dos visitantes de uma forma negativa
Nesta definição, o conceito de Overtourism não é sequer vizinho do conceito de turismofobia porque tem em conta o impacto do excesso quer na experiência dos próprios turistas, quer na qualidade de vida dos residentes.
2. Capacidade de carga
Nem sequer vamos discutir o peso da indústria do turismo da economia nacional: 16% do PIB e meio milhão de empregos falam por si. Podemos ainda acrescentar que, no caso do Porto, que é ao sector turístico que devemos o principal impulso no processo de reabilitação do património degradado, mas, mesmo assim, é legítimo questionarmo-nos sobre a sua sustentabilidade e sobre o seu impacto nas cidades e na qualidade de vida dos cidadãos. A primeira coisa que nos perguntamos é se não serão demais. Qual a capacidade de carga? Em 2022, por cada residente no Porto havia nove turistas e meio. Um dos rácios mais elevados em todo o mundo. Aliás, Portugal faz parte de um grupo restrito de países em que o número de turistas supera o número de habitantes. Este rácio tem-se agravado progressivamente (em 2012 a proporção era de quatro turistas por residente) e, a avaliar por 2023 não se ficará por aqui já que se anuncia como o ano de todos os recordes. A tendência é para que este rácio se desequilibre ainda mais, quer pela fuga da população, quer pelo aumento expectável de turistas. É preciso que se note que este valor é calculado pelo nº de turistas que pernoitam no concelho, sendo cego relativamente às visitas ida-e-volta tipo excursão, como é, por exemplo, os que chegam via Terminal de Cruzeiros, bem como para os que ficam hospedados em concelhos vizinhos com forte conectividade com o Porto, como é o caso de Vila Nova de Gaia e Matosinhos. O número de camas registadas (outro assunto será o número de camas disponíveis no mercado paralelo) mais que duplicou numa década: se em 2012 eram 21.422 camas, em 2022 eram 43.782. Recentemente soubemos que está em curso o licenciamento de novas 139 unidades hoteleiras. A dúvida que nos assalta é se aguentamos com este peso. Não sabemos ao certo qual a capacidade de carga das nossas cidades, isto é, quantos turistas podemos receber sem entrarmos em ruptura. Não há uma resposta única e definitiva, não há um rácio mágico de número de turistas por habitante. Apesar do conceito estar muito ligado a dados objetivos, a variedade e especificidade local de cada cidade e a forma como as variáveis se relacionam entre si, tornam impossível encontrar uma métrica universal. A capacidade de carga de cada cidade depende da sua dimensão, do número de habitantes, da rede de transportes, do tipo de malha urbana e características dos arruamentos (por exemplo, basta haver passeios estreitos para que a capacidade de carga se reduza drasticamente), do número disponível de imóveis para equipamentos de alojamento, restauração e diversão e até das própria rede de infraestruturas básicas como saneamento, águas (em alguns destinos, a escassez de água agravada pelo excesso de população basculante gerada pelo turismo, a capacidade de carga é claramente ultrapassada), energia e internet, da robustez dos serviços (saúde e outros) e até das próprias condições de segurança. Em 1983, a Organização Mundial do Turismo estabeleceu que:
capacidade de carga é a capacidade de suporte ou tolerância de uma área para acolher um número de visitantes sem alterar o seu estado natural
Esta definição traz implícita a ideia de que há um limite natural ao crescimento turístico. Nem as cidades são todas iguais e nem todos os bairros dentro de cada cidade são iguais, possuindo características que determinam uma maior ou menor capacidade de carga. Por exemplo, os bairros históricos, pela sua morfologia e condicionantes patrimoniais, sobretudo se forem centros históricos classificados, apresentam, à partida, uma menor capacidade de carga quando comparados com outros bairros, mas acontece que são precisamente os bairros históricos que, por norma, são os mais atrativos e que acabam por suportar a maior carga. Pensemos nos caso do Porto: os turistas aglomeram-se na espinha dorsal que vai do Morro da Serra do Pilar, Ponte D. Luís, Ribeira, Sé, Flores, Aliados e que depois abre as badanas, como um bacalhau, para a esquerda no sentido dos Clérigos, Galerias de Paris, Lello, e para a direita, no sentido de Santa Catarina e Poveiros. É aqui que está o epicentro desse terremoto.
3. Um AL, dois ALs, três ALs… 10506 ALs (and counting…)
É ainda inevitável olharmos para o impacto que o turismo tem no acesso à habitação. Naturalmente, não podemos assacar todas as responsabilidades ao sector.. Haverá com certeza outras variáveis tais como as políticas dos vistos gold e de proteção dos chamados “nómadas digitais”, do regime especial dos residentes não habituais, das escolhas dos agentes do mercado e do próprio desinvestimento público na habitação, mas não é possível ao sector do turismo enjeitar a sua quota parte de responsabilidade na crise da habitação, até porque pela sua extrema visibilidade é percepcionado pelo público em geral como a principal causa, contribuindo de forma decisiva para a construção de uma percepção negativa sobre o sector. Há coincidências que não podem ser simples correlações, como, por exemplo, as freguesias com preços que aumentaram de forma dramática nos últimos anos e que entraram em processo de perda populacional ou de recomposição social são aquelas que sofrem uma maior pressão turística. O estudo encomendado pela CMP à Universidade Católica procura construir uma medida de pressão do AL sobre a habitação, ou seja, um rácio resultante do cruzamento do número de ALs (obtido pelos registos de licenciamento e taxas turísticas cobradas) e a oferta de habitação (medida a partir do número de contadores de água domésticos activos). Por mais falível que seja metodologia, trabalha a partir de dados fiáveis e relevantes e permite obter uma radiografia, a qualquer momento, da evolução do rácio. É, portanto, um instrumento valioso na regulamentação municipal do AL. Os dados obtidos não decepcionaram e confirmaram a percepção generalizada de que havia partes do território do município profundamente desequilibradas. Os números (neste link, não deixem de consultar também o mapa) são bastante impressivos:
Daqui resulta a publicação do Regulamento Municipal para o Crescimento Sustentável do Alojamento Local do Porto que prevê, não obstante uma grande quantidade de excepções previstas, uma área de contenção envolvendo as Freguesias de Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, São Nicolau e Vitória, sendo que o resto da cidade é considerada – e passo a citar – “Áreas de Crescimento Sustentável” onde poderão ser aprovados novos ALs de acordo com um limite pré-estabelecido. Por mais limitada que seja esta abordagem, ela evidencia a tomada de consciência de que a capacidade de carga havia sido excedida. Todavia, não se vê aqui uma tentativa de correcção e de alívio das zonas mais sacrificadas (de tentar redistribuir o mal pelas aldeias), mas apenas tão só de congelar a situação nas freguesias críticas e aquecer as freguesias mais tranquilas.
4. Entretanto, lá fora…
As primeiras notícias da bulimia turística vieram de Amsterdão, Barcelona e Veneza. O padrão que se lê por detrás da especificidade de cada uma das cidades, é sempre o mesmo: o excesso leva à contestação popular e a contestação popular à implementação de políticas restritivas. Em Amsterdão (que em 2018 recebeu 19 milhões de visitantes!), o governo local soube interpretar o mal estar da comunidade e tomou medidas como reforçar a fiscalização e aplicar multas pesadas sobre o consumo de álcool na via pública, a penalização de comportamentos como barulho nocturno, urinar nas ruas, deitar lixo no chão, baniu autocarros turísticos e cruzeiros, decidiu transferir para uma localização periférica o «Red Light District», que era um dos principais pólos de atracção turística (medida que está longe de ser pacífica), proibição de venda de canábis a não residentes e, sobretudo, congelou o licenciamento de novos hotéis e restringiu fortemente o funcionamento das licenças Airbnb que passaram a ter uma validade de apenas 30 dias por ano. Em Veneza (20 milhões de turistas/ano), apesar de poucos (50 mil na zona central) e dependentes do turismo, os moradores têm-se manifestado de forma ruidosa, em especial contra os grandes navios de cruzeiro, mas não só. A degradação dos serviços, nomeadamente do comércio local cada vez mais sequestrado pela indústria do turismo, e o elevado custo da habitação têm sido motivo de manifesto descontentamento por parte da população. Neste caso, os governantes não têm sido tão expeditos e radicais como os seus congéneres de Amesterdão. No entanto, a proibição dos navios de cruzeiro parece ser ponto assente e avançou-se para uma medida radical para tentar controlar a maré diária de visitantes com a cobrança de uma taxa (10€) aos turistas que pretendam visitar a cidade. Esta medida, contudo, também não é pacífica porque para os residentes Veneza é uma cidade e não um parque temático para ser cobrado um bilhete. Barcelona, a mesma Barcelona do invejado e exportado “Modelo Barcelona”, o mesmo modelo odiado e denunciado por muitos (ver, por exemplo, Manuel Delgado que a apelida de “cidade mentirosa”, “fraude”, “miséria” e “cidade-negócio”) talvez vítima do seu próprio sucesso, vê-se a braços com 20 milhões de visitantes por ano. O que não é um problema menor. O mal estar da população tem vindo a crescer, tornando-se cada vez mais visível e vocal. Primeiro surgem graffiti nas paredes e desabafos nas redes sociais e, depois, as manifestações. O que está em causa é o comportamento turbulento dos turistas que leva a muitos catalães a levantarem a voz contra «turisme de borratxera» mas também, como em muitas outras cidades, o problema da habitação agravado pela captura do alojamento disponível pela indústria do turismo. Quando o governo local finalmente reconheceu a dimensão do problema, implementou uma série de medidas: fiscalização do alojamento ilegal, moratória no licenciamento de novos alojamentos, proibição de novos hoteis em determinadas localizações e desenvolvimento de regulamentos específicos para os bairros mais afectados.
5. O Portal
O que estas experiências nos dizem é que as cidades, por norma, só tomam medidas quanto ao impacto do turismo quando é atingido o ponto William Blake: “You never know what is enough unless you know what is more than enough.” É evidente que a ruptura da capacidade de carga não tem a ver apenas com a capacidade física e material das cidades absorverem, suportarem e digerirem turistas. Há todo um conjunto de variáveis e circunstâncias não mensuráveis que levam a uma rejeição abrupta dessa espécie de colonização. Um dia acordamos e não nos sentimos mais em casa apesar de, a partir da nossa janela, a paisagem continuar a ser a mesma de sempre. A percepção dessa ruptura é o que se chama de overtourism. Esta percepção é construída não só a partir de elementos duros que se impõe de forma dramática como a dificuldade em conseguir uma casa e a consequente periferização da vida nas orlas da cidade, mas também por elementos leves, quase imperceptíveis, mas que acumulados pela experiência quotidiana de cada um de nós se tornam decisivos. Pode ser a nuvem de tuk-tuks ou o comboiozinho a atravessar em ritmo de cortejo fúnebre a ponte do Infante, entalando atrás de si todo o trânsito; pode ser a constatação de que a casa de ferragens centenária é agora um cocktail bar; pode ser que já não se pode ir ao Bolhão comprar cebolas sem apanhar com um magote de turistas timeoutizados a beber copos de vinho e a sorver ostras; pode ser aquela conversa de circunstância, na Baixa, «lembras-te de quantos bancos havia nesta rua?»; pode ser a dificuldade cada vez maior em encontrar um sítio onde se possa tomar um simples cimbalino; poder ser a sensação de que os lugares de sociabilidade dos residentes são cada vez menos e cada vez mais a noite se transforma numa espécie de festa de erasmus permanente; poder ser a omnipresença das placas AL e as carrinhas estacionadas em cima do passeio, pela manhã, a trazer lençóis e toalhas lavados para a próxima leva que está a caminho; pode ser quando desistimos de almoçar ou jantar nos territórios ocupados entre o Douro e a Constituição porque agora só servem coisas como “experiências” ou o “melhor-não-sei-quê-do-mundo” ou “hambúrgueres artesanais” (o que só prova que os oxímoros também se comem) ou qualquer coisa igualmente genérica que pode ser encontrada em qualquer outra cidade que esteja a passar pelo mesmo; poder ser quando verificamos que já quase não se comem tripas na cidade dos tripeiros (um dia, teremos, de certeza um Museu das Tripas para lavar as consciências); pode ser quando nos lembramos de que a Lello era uma livraria e não uma casa de passe; pode ser quando verificamos que em S. Bento são mais os turistas do que os passageiros; pode ser os menus em inglês apenas inglês; pode ser quando percebemos que existem mais lojas de souvenirs asiáticos do que farmácias, mercearias e bancos todos juntos; pode ser quando temos de nos preparar mentalmente para suportar a fila de turistas atarantados na caixa do Pingo Doce; pode ser quando nos lembramos de que os eléctricos já foram um transporte público; pode ser quando nos dizem o Elevador da Lada vai deixar de ser um equipamento de apoio às populações locais para se tornar num equipamento turístico (€2 por cabeça) por via das “vistas únicas” (CMP dixit); pode ser quando percebemos que se anuncia um “mercado” Time Out em São Bento na mesma semana em que se levanta a possibilidade, mesmo ali ao lado, de demolição do mercado de São Sebastião; pode ser quando somos acordados sobressaltados às 3 da manhã com o fogo de artifício; pode ser quando vemos um rabelo a passar a toda bolina, como um gasolino, carregado de turistas dando a volta que leva a lado nenhum entre o Freixo e a Foz; pode ser quando enésima centésima vez nos páram para perguntar como se vai para Ribeira ou para a Ponte D. Luis; pode ser o barulho dos músicos falhados que tomaram de assalto as ruas para extorquir algumas moedas aos turistas; pode ser as efabulações mais ou menos inocentes da tribo dos guias turísticos à solta pela cidade; pode ser a impressão de que cada vez é mais difícil encontrar na rua pessoas e termos daqueles encontros fortuitos com alguém conhecido (que podemos prezar ou não prezar, isso é irrelevante para aqui) que, ao fim e ao cabo, é o que faz uma cidade ser cidade. Muita gente, mas poucas pessoas. Pode ser tudo isto junto e muito mais. Desafio-vos acrescentarem o vosso próprio “pode ser”. Este alinhamento algo caótico das razões que nos levam a pensar que, às tantas, isto é capaz de ser demais, não são muito diferentes daquelas que qualquer habitante de uma qualquer outra cidade nas mesmas condições, acrescentando aqui um ponto e eliminando outro ali, diria. Os residentes são os primeiros a sentirem a saturação desta cidade pleonástica, que se repete sempre igual, bairro por bairro, e por toda a Europa onde exista uma aeroporto para descarregar turistas low-cost.
A cidade tematizada, etiquetada, embrulhada e até falsificada para o entretenimento efémero do visitante, mas inóspita para se viver. Diria que o excesso de turismo corrói a própria urbanidade. Quando uma cidade deixa de ser apenas uma cidade com turismo e passa a ser uma cidade turística, ou seja, quando o turismo deixa de ser apenas uma de entre outras atividades económicas e passa a ser a indústria dominante, algo muda na natureza das cidades. É como se se atravessasse um portal que nos transforma e transforma a realidade em que habitamos. Mas em que momento exacto se dá esta transformação? Quando é que se dá a travessia desse portal? Marco D’Eramo (sigo a edição espanhola: El selfie del mundo: una investigación sobre la edad del turismo. Já era hora desta obra ser traduzida e publicada entre nós…), apoiando-se em Judd R. Dennis apresenta uma boa resposta para esta questão: em condições normais, o turista usufrui dos serviços pensados para os residentes, mas na cidade turística, são os residentes que têm de usar os serviços pensados para os turistas. Marco D’Eramo exemplifica da seguinte forma:
Passar esse limiar de transição tem consequências imprevistas e irreversíveis. Isto vê-se de forma clara nos restaurantes. Abaixo do limiar os turistas comem em restaurantes que cozinham para os locais; acima desse limiar, os residentes terão de comer em lugares focados no mercado turístico. Há trinta anos era praticamente impossível comer mal em Roma e em Florença. Hoje é dificílimo comer bem. Por que deveria um restaurante esfalfar-se cozinhando com esmero para um cliente que jamais voltará? (P97).
Creio que esta experiência soará familiar a muitos de nós. Hoje em dia, almoçar na Baixa e Centro Histórico significa ter de nos sujeitarmos a um serviço que não foi pensado para nós mas para os turistas. A maior parte das vezes, a qualidade ressente-se e o preço exclui-nos. Quem diz isto, diz o comércio em geral com a inultrapassável dificuldade de que nas lojas de recordações dificilmente poderemos encontrar alguma coisa que corresponda às nossas necessidades. Este é um critério diferente do conceito de capacidade de carga porque não é quantificável, mas nem por isso é menos valioso. A questão se os turistas usam a cidade tal como ela é para os residentes ou se os residentes é que vivem numa cidade pensada para os turistas, mesmo que não nos leve a uma resposta definitiva, terá pelo menos a vantagem de nos conduzir a uma tomada de consciência da nossa própria identidade e abrir caminho para outras questões complicadas sobre o que é afinal uma cidade e para que serve.
6. Chuva de Prémios
O Município do Porto agarrou-se ao turismo como um maná vindo dos céus, mais propriamente da Ryanair, Easyjet & Cia. O esforço colocado na promoção internacional da marca Porto. (não esquecer o ponto, afinal estamos a falar de uma marca registada) chega a ser encanitante. A insistência na perseguição de prémios internacionais mais ou menos prestigiados, mais ou menos transparentes, denota que ainda estamos na fase do «quanto mais melhor» ou «nenhum turista será deixado para trás». A listagem de prémios é uma sucessão de galardões que, de uma forma geral, resultam de processos de votação on-line, o que, de certa forma, está de acordo com o espírito do tempo:
Paralelamente, muitos outros prémios atribuídos a sectores especializados do sistema de produção turística, tais como o Best of Wine Tourism, vários prémios associados à promoção turística, nomeadamente de filmes promocionais, prémios de imobiliário, de eventos e festivais, de hotéis e equipamentos turísticos. Como devem compreender, vou abster-me de estar aqui a enumerá-los exaustivamente. Tal como não vou aqui reproduzir os recortes de imprensa internacional dedicados ao destino turístico Porto que a câmara colecciona diligentemente no seu próprio painel (porto.pt). Como é natural, neste painel não cabem os artigos críticos. Consistentemente, não tomou qualquer medida de moderação atempadamente, limitando-se a emitir licenças sem atender aos sucessivos alertas até se chegar a uma situação de saturação. Mas mesmo as medidas de limitação de emissão de novas licenças na área de contenção não só são sabotadas por diversas excepções previstas no próprio regulamento, como também prevê a expansão para outras áreas ainda não saturadas. Para além disso, a CMP não prevê tomar qualquer medida limitadora no licenciamento de novos hotéis, os quais continuam a ter, ao contrário dos ALs, carta branca para abrirem as unidades que bem entenderem. Argumenta a CMP que não tem o poder para proibir a abertura de novos hotéis. Também é verdade que nunca ouvimos a CMP, tão vocal noutros assuntos, a reclamar junto do governo poderes para tal. Em todo o caso, convém lembrar que a elaboração de PDMs é da competência municipal e se, em devido tempo, não foi acautelada esta situação, continua ao alcance da CMP despoletar um processo de revisão extraordinária do PDM para limitar o licenciamento de hotéis em zonas críticas. Pode não resolver as licenças em curso, mas estanca a maré no futuro a médio prazo. Só não o faz porque não quer já que depende apenas dela própria.
7. A política possível
Para sermos justos, temos de reconhecer que a CMP, para além da definição de áreas de contenção dos ALs, tem tomado várias outras medidas mitigadoras do efeito do turismo, sendo que algumas delas são tomadas em outros contextos, no âmbitos de outras problemáticas, mas que, apesar de desarticuladas com a problemática do turismo, acabam por um efeito mitigador, por mais ténue que seja. Assim, em primeiro lugar, é de referir a criação de uma taxa turística (2017 e revista em 2022), um tipo de medida que apesar de vulgarizada um pouco por todo o lado, demorou a ser adoptada entre nós com o receio de – espante-se – afugentar os turistas. A tendência actual nas principais cidades turísticas europeias é para a subida dos valores ou para a cobrança diferenciada segundo critérios considerados relevantes para a gestão da oferta turística pelos governos locais. Assim, as taxas podem ter um valor diferenciado em função da época do ano, da localização ou da categoria do alojamento. Para já, não parece haver qualquer intenção da CMP alterar a sua política de cobrança de taxas, nem sequer para actualizar o seu valor. Em segundo lugar, a proteção do comércio tradicional através do programa Porto de Tradição (2019). Repare-se que na nota justificativa do regulamento do referido programa justifica-se a medida com a necessidade de “proteção e salvaguarda” dos «estabelecimentos de comércio tradicional local e as entidades de interesse histórico, cultural ou social local, como marca identitária da cidade, bem como salvaguardar as suas características únicas e diferenciadoras e cuja história se funde com a da própria cidade», nunca objectivado de que ameaça em concreto se pretende protegê-las. Naturalmente, apesar de não explicitadas no texto, talvez por motivos de ordem ideológica próprios de um executivo com um pendor claramente liberal, a ameaça tem origem na pressão do mercado imobiliário e da indústria turística, sendo que esta medida protege não apenas o comércio e estabelecimentos históricos, como também, protege a indústria do turismo dos seus próprios excessos porque a preservação destes lugares de tradição, contribui para a qualificação do próprio produto turístico. Todavia, este programa assenta em pressupostos muito limitados na medida em que restringe esta proteção a critérios de valor patrimonial cultural (material e imaterial) e antiguidade. Ora, seria interessante a preservação de comércios e serviços de suporte da comunidade local, tais como mercearias, farmácias, drogarias e outras. Esta rede de comércio de proximidade local, revelou-se importantíssima no apoio às populações durante a pandemia e daí deveríamos ser capazes de extrair as devidas conclusões. Em terceiro lugar, o exercício do direito de preferência nas situações previstas na lei por parte do município. Tal como no ponto anterior, esta medida não se articula diretamente com a política municipal do Turismo mas com a política de habitação, mas como não é possível separar a questão da habitação da questão do turismo, podemos considerá-la aqui. No primeiro mandato, Rui Moreira cortou com a política de alienação do património do seu antecessor, optando por reservar os imóveis municipais para alojamento habitacional e, acessoriamente, iniciou a política de aquisição de novos imóveis através da figura de direito de preferência. Todavia, esta medida tem resultados pouco mais do que simbólicos. Outras iniciativas que, pela sua dimensão, poderiam ter um peso efectivo, como o caso do Monte Pedral, processo que se inicia precisamente pela devolução ao município dos terrenos do Quartel da Rua de Serpa Pinto, continuam a patinar. Em 2019 anunciava o vereador de Urbanismo que no ano seguinte já teríamos obras no terreno, intenção que até à data ainda não se efectivou. Em quarto lugar, a tentativa de disciplinar a movida através do zonamento de horários e de atividades tendo para tal criado um regulamento específico, bem como a figura de Diretor da Movida (não muito longe da figura de gestor/provedor de área urbana proposta em 2013 pela APRUPP, tal como, de resto,a criação de Taxa Turística na mesma Carta de Recomendações). É a mesma situação das medidas anteriores: não se inscrevendo declaradamente numa política de turismo, acaba por se cruzar com esta porque a economia da noite é alimentada , em grande parte, pelo turismo. Manifestamente, a cidade está a sentir muita dificuldade em gerir o fenómeno. Por último, regressamos às medidas direcionadas diretamente aos turistas, ou seja, falemos do Manifesto do Turista, lançado no final de setembro, já no final da época alta, que nada mais é do que um folheto em inglês (castelhano, francês e, já agora, português não são contemplados vá-se saber lá porquê) que recorda as regras as simples regras de civilidade: não nos roubem azulejos, não bebam demais e não nos mijem as ruas. Não se sabe lá muito bem como porque o folheto não explica, mas estas regras articulam-se com os Objetivos Desenvolvimento Sustentável 2030 das Nações Unidas. Mas, sobre este assunto, por se tratar da única medida visível decorrente do Plano Estratégico para o Turismo do Porto que veio agora à luz sob o título «Visão de Futuro para a Sustentabilidade do destino Porto», vale a pena olharmos com mais calma para este documento porque, em princípio, este deverá conter algumas das respostas para as questões que temos aqui explorado.
8. Visionários
A primeira perplexidade é que não existe tal documento ou se existe não se encontra acessível em lado algum. Na verdade, conhecemos muito pouco deste plano. Sabemos que em maio de 2022 foram apresentadas, ao Conselho Municipal de Turismo, as «ideias gerais», mas na ausência de atas (que já deveriam ter sido publicadas) pouco mais ficamos a saber para além do anúncio da vereadora, que só confirma aquilo que já se esperava: «Estamos a preparar um plano estratégico para o turismo, com prioridade à captação de turistas». Em setembro do mesmo ano, nas celebrações do Dia Mundial do Turismo, Catarina Santos Cunha apresenta sumariamente aquilo que julgamos ser uma versão mais evoluída do plano com a designação «Visão de Futuro para a Sustentabilidade do destino Porto», onde, apesar de tudo, vai avançando com mais alguns pormenores sobre a visão estratégica da cidade para o turismo. Estas generalidades são consultáveis de uma forma muito esquemática e lacónica no flyer publicado no site da CMP. Na falta da publicação do plano (Plano? Qual plano? perguntarão alguns…) e dos estudos que, com certeza, estiveram na base das opções, teremos de nos entender com tão somítica informação, aceitando desde já o risco de tentar preencher os vazios.
Um aspecto interessante do documento é que elenca uma série de compromissos que, à excepção do compromisso da sustentabilidade ambiental, são apresentados sob a forma de dicotomias:
Este jogo de dicotomias tem aspectos bizarros porque as dicotomias implicam sempre uma certa polaridade, ou seja, terá de haver alguma forma de relação de oposição entre os dois conceitos (frio Vs quente, por exemplo) e o que acontece aqui é que alguns destes termos parecem estar acasalados com o parceiro errado. Esperaríamos que a Tradição se opusesse a Modernidade e a Autenticidade, num certo sentido, a Criatividade. Não tendo sido esse o entendimento de quem esboçou o plano, teremos de assumir que há uma determinada intenção nesta aparente troca de oposições. Assim, quando dizemos que procuramos um compromisso, um meio termo, entre Autenticidade e Modernidade, estamos logicamente a tomar um lugar novo que não é totalmente autêntico. O meio termo, o compromisso, entre um e outro implica uma modernidade que é parcialmente autêntica e vice-versa. O mesmo se passando com a dicotomia Tradição Vs Criatividade que tem o seu ponto de encontro na invenção de novas tradições. As tradições, portanto, passam a ser não autênticas mas criativas. Para percebermos melhor o alcance disto tudo, o melhor será voltarmos a pôr os pés na terra. Estas dicotomias são territorializadas através da dicotomia Património Central Vs Resto da Cidade, ou seja, o compromisso entre as freguesias centrais hiperturistificadas e as freguesias (para este efeito, chamemos-lhes assim) marginais passa por drenar a procura do Centro Histórico e Baixa para Campanhã, Bonfim e por aí fora. Este transvase será feito através de «Novas Narrativas» que qualifiquem essas zonas enquanto produto turístico. Trata-se de dividir o território em Bairros que para serem marcados e identificados como produto de consumo turístico têm de levar uns implantes narrativos. É preciso inventar uma identidade mais ou menos autêntica, mais ou menos moderna, mais ou menos tradicional, mais ou menos criativa e, já agora, mais ou menos local, mais ou menos “cosmopolita” para cada um desses bairros.
Serão bairros temáticos, portanto. No fundo, não é nada de novo, as identidades falsificadas enquanto engodo turístico existem um pouco por todo o lado, desde do Portugal dos Pequenitos à Disneyland. A diferença é que desta vez vai-se fazer isto numa cidade com pessoas lá dentro. A ideia é manter e aumentar o nível de procura turística, diversificando a zona de expansão desta atividade. Claramente, para a CMP o caminho é só um: transformar toda a cidade numa cidade turística. Os residentes carecem de materialidade. Parecem, neste documento, entidades diáfanas, expectantes que uma narrativa ditada por um criativo qualquer lhes dê forma. Aquilo a que se chama locals. Um local não é um cidadão, não é um homem nem uma mulher, mas um adereço. Há momentos verdadeiramente confrangedores neste documento. Por um lado, define o perfil desejável do novo turista, o tal alvo da sedução das «novas narrativas», como sendo americano ou asiático, com grande poder de compra e sofisticação, com apetência por produtos de luxo. Um turista premium, portanto. Por outro lado, logo mais à frente diz que estes “Bairros” (honestamente o próprio documento não prescinde das aspas) têm como função
criar experiências de turismo imersivo, pensadas para quem procura viver a cidade “Like a Local“
Ora, os locals, ao contrário do turista ideal, não são premium, são pessoas e apenas pessoas a viverem a sua vida, a maior parte das vezes, muito pouco sofisticada. Na verdade, um local é apenas uma pessoa turistificada pelo olhar do outro. Estávamos habituados que essa objectificação dos residentes fosse feita consciente ou inconscientemente pelo olhar do próprio turista ou das publicações especializadas como a Time Out. Ainda não estamos habituados a ser turistificados pelo olhar dos nossos próprios governantes. Isto, meus senhores, é uma nova etapa.
Não se pode dizer, no entanto, que o documento passe completamente ao lado do bem estar da comunidade. Aliás, propõe-se a
Incentivar a coesão da comunidade, promovendo atividades de lazer que garantam o intercâmbio cultural entre locais, turistas e expatriados
como estratégia para priorizar o bem-estar da comunidade. O único momento em que o bem-estar dos residentes é tido em conta, é o momento em que nos é permitido participar nas atividades de lazer desenhadas para os turistas. É o momento “Que comam brioches” de Catarina Santos Cunha. Esta total falta de noção, de resto, está perfeitamente em linha com outros documentos produzidos pela CMP como, por exemplo, estudo Rank Porto 2023, usa como referência para avaliação da Qualidade de Vida na cidade do Porto, uma coisa que dá pelo nome «Índice Time Out City Life», um inquérito feito on-line (sabe-se lá com que rigor e em que condições) que abrange tópicos típicos de uma publicação centrada no lazer e turismo (restaurantes, bares, espectáculos, etc…).
Em momento algum, há, nesta “visão” espaço para ponderar os impactos do crescimento acelerado do turismo sobre a população e sobre o espaço físico. É um documento que define uma política pura e dura de promoção, crescimento e expansão da indústria turística na cidade. Procura acelerar e desenvolver o turismo até à sua consolidação, que nunca é definitiva porque o objectivo é entrarmos na fase do hamster preso na roda, que tem de manter o movimento e acelerar para se manter no mesmo sítio. O ciclo de Butler sugere que todas as cidades turísticas passam mais ou menos pelo mesmo ciclo evolutivo: 1º) Fase Exploratória; 2º) Fase de Envolvimento; 3º) Fase de Desenvolvimento; 4º) Fase de Consolidação; 5º) Fase de Estagnação; 6º) Fase de Rejuvenescimento Vs Declínio. Repare-se que neste modelo não se admite a possibilidade de um crescimento eterno do turismo. A partir da fase de Consolidação entramos em terreno crítico. Os destinos turísticos desgastam-se e os consumidores são infiéis por natureza. A partir daqui cada cidade, uma vez convertida em cidade turística, entrará num processo de constante reinvenção e renovação para evitar o declínio. Esta luta constante contra a inevitabilidade não se faz sem um forte investimento público e consumo de recursos da comunidade. Naturalmente, também não se faz sem qualquer impacto ambiental, social e humano. Seria importante tentar projectar que impactos seriam esses, assumi-los e trabalhar com todas as variáveis, em vez de se trabalhar com a crença de que a mão invisível do turista resolverá por si só todas estas questões.
Uma autarquia não pode apresentar como estratégica uma visão que aponta num único sentido: o incremento do turismo. Para isso existem os privados, as associações do sector ou até agências públicas especializadas. O que se espera dos governantes locais é que ao produzirem um documento que se apresenta uma visão sustentável do futuro do turismo na cidade, pelo menos, não obliterem o outro lado da questão. Este documento não responde às questões tão básicas e elementares como: Quantos turistas? Quantos hotéis? Em que zonas da cidades? Qual o limite de turistificação por cada “Bairro” (para usar a nomenclatura proposta)? Como se definem esses limites? Que propostas de medidas de mitigação dos impactos negativos? Ou todos os impactos são positivos? E já agora: Qual o plano B se a rota migratória dos turistas for desviada para outras paragens? Que cenários alternativos propõem? E como tudo tem o seu próprio tempo e nós enquanto cidade pós-industrial sabemos bem disso: Qual o plano para uma cidade pós-turística? O que fica depois de tudo isto passar? Diz Rui Moreira na cerimónia de apresentação da visão que, com a pandemia, ficamos a saber o que é a cidade sem turismo. Portanto, conclui ele que temos de apostar as fichas todas no turismo. Já quem não foi agraciado pela visão tenderá a divergir: a pandemia demonstrou a fragilidade da indústria do turismo, pelo que talvez não seja sensato apostar todo o nosso futuro no turismo.