PORTO + NORTE


  • Turismo: Modo de Vida

    PARTE I: SOUVENIRS HÁ MUITOS.

    Numa tarde qualquer de outubro, seis meses depois dos acontecimentos do Bonfim e um mês após o episódio do esfaqueamento de dois imigrantes e, já agora – dois meses antes da polémica rusga no Martim Moniz, em Lisboa, o presidente da Câmara Municipal do Porto resolveu eleger as lojas de souvenirs como inimigo nº 1 da cidade. Convém dizer que não estamos a falar de toda e qualquer loja de souvenirs. Não estamos a falar, por exemplo, da omnipresente cadeia espanhola Ale-Hop (que veio substituir a mercearia mais antiga da cidade), nem da miríade de negócios locais ou franchisings  que vão desde das latas de sardinha às camisolas do FCP. Não. As únicas lojas de souvenirs que perturbam o sono do edil são as lojas exploradas por imigrantes e não faz a coisa por menos acusando-as de  lavar dinheiro e de traficar seres humanos, apresentando como evidência o preço dos ímans a 50 cêntimos, quantia judiciosamente considerada pelo autarca como insuficiente para pagar a renda em zonas nobres da cidade. Eu próprio também não sei como vender meias com padrões de azulejos paga uma renda de uma loja, mas também não me ponho para aí a especular quanto à honorabilidade dos comerciantes. Mas isso sou eu, simples cidadão. Não estou no lugar de responsabilidade de um líder eleito, pelo que evito lançar o anátema sobre 180 lojas sem saber, de facto, o que lá se passa. Também não me vejo a esticar a corda, a ver até onde esta aguenta com a tensão racial. Deixo isso para quem sabe e para quem foi democraticamente eleito para governar todos os portuenses, incluindo os novos portuenses.

    Sejamos justos. Rui Moreira tem toda a razão em estar preocupado com este enorme souk em que se transformou a Baixa em que porta sim, porta sim existe um negócio qualquer vocacionado para a ordenha de turistas. A maior banca deste souk até é essa turist trap a que chamamos, por força da inércia da memória e por estratégia de marketing, de Mercado do Bolhão, um equipamento municipal. Depois há ainda toda uma cacofonia de mercados disto e daquilo ocupando o espaço público com bugigangas e pseudo-artesanato, há as lojas de multinacionais especializadas em toda a espécie de quinquilharia que não interessa nem ao menino Jesus, há o melhor pastel de nata do universo e a praga da comida turistificada, há o zum zum das motorizadas da Uber que, como moscas, circulam incansáveis por todas as ruas e ruelas da cidade, há os hotéis, ALs e sabe lá o que mais, há os quiosques transformados em falsos postos de informação turística e que apenas vendem voltinhas no carrossel dos bus turísticos. Há tudo isso e tudo o resto. No meio desta turba de vendilhões que tomou conta da cidade, Rui Moreira tem a extraordinária capacidade de apontar cirurgicamente o dedo a alguns deles – e apenas a alguns deles – distinguindo-os dos outros e chegando ao ponto de fazer zoom sobre os preços praticados para denunciá-los como um perigo para as famílias e para a economia da cidade. Talvez tenha uns óculos especiais.

    Como qualquer outra pessoa, sou fã de regras, sobretudo na gestão da coisa pública. As cidades devem ter uma palavra a dizer quanto ao tipo de atividade económicas desenvolvidas em zonas sensíveis. Ao longo da história e um pouco por todo o lado sempre o fizeram. Seja por razões sanitárias, seja por razões associadas a horários de funcionamento, seja para garantir o normal funcionamento da cadeia de abastecimento e suporte da comunidade residente. Parece-me bem que se preservem serviços essenciais como farmácias, bancos e padarias, que se protejam estabelecimentos de evidente interesse histórico e patrimonial, que se controle o horário de funcionamento de algumas atividades que possam entrar em conflito com o descanso de residentes, que se crie um zonamento para determinadas atividades e que se criem quotas máximas para negócios que se arrisquem a se tornarem hegemónicos pondo em causa a diversidade e complementaridade típica da vida urbana. O que não me parece nada bem é que se reclame o (legítimo) direito de condicionar o licenciamento da atividade comercial à origem racial do comerciante. Tem por isso, a meu ver, razão Rui Moreira quando reclama pelo fim do licenciamento zero, mas absolutamente nenhuma se estas regras se aplicarem apenas aos paquistaneses, indianos, bengalis, chineses e outros. Se vamos criar regras, estas que se apliquem à totalidade do ecossistema, a começar pelos hotéis.


    PARTE II: UMA CORNUCÓPIA DE HOTEIS

    A reivindicação dos poderes de regulamentação esmorecem, precisamente, quando subimos na cadeia alimentar do ecossistema. Perante os números avassaladores da quantidade de hotéis em marcha no pipeline de licenciamento, a posição da câmara municipal é bem mais comedida. Em finais de 2023, anunciava-se que o Porto contava já com 148 hotéis e 98 vinham a caminho durante 2024. No início de 2025 anunciam-se 122 novos hotéis em fase de licenciamento, sendo que 63 já se encontram em fase de obra. Longe vão os tempos em que o presidente executivo do Conselho de Administração da Porto Vivo SRU então em exercício, Álvaro Santos, alertava para o número excessivo de hotéis. Estávamos em 2014. Passados dois anos, já algo conformado, limita-se a anunciar que vêm a caminho mais 11 hotéis, já sem tecer quaisquer considerações quanto aos perigos da excessiva  concentração do investimento neste negócio. Este conformismo parece ter tomado conta da própria câmara. Os argumentos apresentados por Rui Moreira contra a proposta de uma moratória de novos hóteis foram os seguintes:

    • Não há hotéis a mais, bem antes pelo contrário, há hotéis a menos;
    • As externalidades do turismo são essencialmente positivas;
    • Não é aceitável uma «regra proibicionista».
    • A estes argumentos junta ainda Pedro Baganha o de que tal medida também não seria possível por falta de «enquadramento legal e jurídico».

    O argumento das «mãos atadas» acabou de ser reiterado na última reunião do executivo. Este argumentário padece de alguma fragilidade. Regulamentar qualquer atividade pode implicar a imposição de certos limites, sem que tal seja sinónimo de alguma forma de proibicionismo (veja-se, por exemplo, o caso do regulamentação dos artistas de rua). Ao fazer equivaler «regulamentação» com «proibição» está-se a forçar a nota, caricaturando a proposta. Para além disso, não é de todo verdadeiro que não exista enquadramento legal que permita às autarquias definir limites para as diversas atividades económicas. Mas admitindo que efetivamente não existe, então compete aos representantes eleitos reclamar junto do poder legislativo a criação destas ferramentas legais para que as autarquias possam regulamentar essas atividades. Tal como, de resto, o próprio Rui Moreira fez de forma muito veemente e dramática a propósito das lojas de souvenirs. Os argumentos são fracos e, mais, nem sequer são consensuais. Veja-se, por exemplo, o testemunho do Presidente do Turismo do Porto e Norte de Portugal que considerava em 2024 existirem hotéis em número mais do que suficiente no Centro Histórico. E quanto às externalidades, não é de todo consensual que sejam essencialmente positivas. Recordemos que o próprio Presidente da Câmara Municipal do Porto considera que a atividade turística pode gerar externalidades negativas tais como tráfico de seres humanos e a lavagem de dinheiro.

    Há uma dissonância cognitiva quanto ao ecossistema do turismo que é revelada pela por estas polarizações internas ao próprio discurso dos responsáveis políticos a nível local: o turismo tem essencialmente externalidades positivas, excepto se estivermos a falar de lojas de souvenirs porque aí são todas muito más. Somos contra regras proibicionistas contra os hotéis mas queremos limitar a expansão das lojas de souvenirs. Não temos (e, pelos vistos, nem queremos) enquadramento legal para limitar a proliferação de hotéis, mas exigimos que se acabe com o licenciamento zero das atividades comerciais porque queremos regulamentar. Os estrangeiros são bons para a economia da cidade, excepto se forem imigrantes. Há falta de hotéis ou talvez haja hotéis a mais. Não se sabe lá muito bem. O óbvio, aquilo que se nos cola aos olhos, é que as lojas de souvenirs e os hotéis são ambos espécies que dependem do ecossistema turístico, o qual constitui uma unidade indivisível. Se vamos pensar em regras – e é bom que pensemos urgentemente nelas – temos de pensar de forma integrada, isto é, adoptar regras articuladas e consistentes a todos os intervenientes por igual.

    Sejamos claros: o problema das lojas de souvenirs não é um problema de imigração ou de segurança, mas da hegemonia que turismo exerce sobre cidade. Regulamentar a atividade comercial é apenas tratar de uma parte dos sintomas, ignorando ostensivamente a causa. Se tivéssemos uma cidade com um equilíbrio entre o número de residentes e o número de turistas, se tivéssemos uma economia diversificada e não sequestrada por um único sector, certamente que muitas destas lojas seriam ocupadas por outro tipo de atividades e a paisagem urbana muito mais diversificada e apelativa.


    PARTE III: A CIDADE PARA INGLÊS VER

    Como já tinha referido noutra oportunidade, vinha aí a caminho uma operação de tematização geral da imagem da cidade para fins puramente turísticos promovida pela própria Câmara Municipal. E aqui está ela: «Estratégia de base para a dispersão dos fluxos turísticos do destino Porto e a criação de quarteirões no concelho do Porto» [antes de continuarmos, sugiro uma pausa para consultarem o documento; vão lá que eu espero].

    ***

    O ponto de partida desta «estratégia» (acho que não tem mal chamar-lhe isso dado que se identifica a ela própria como tal) é a constatação do facto de haver um «excesso de pressão turística» em algumas zonas da cidade. Só pelo reconhecimento deste facto, o documento já tem algum valor porque contraria a atitude negacionista dos responsáveis autárquicos. Todavia, ao contrário do que seria de esperar, a proposta não vai no sentido de regulamentar a atividade turística mas, bem antes pelo contrário, aponta para a expansão do turismo por todo o território. A pobre língua portuguesa é aqui sujeita às mais cruéis sevícias, torcendo a semântica para se não parecer que se está a dizer o que realmente se está a dizer. Atentemos, a titulo de exemplo, a dois desses conceitos:

    • 1. «Dispersão»   não significa aqui espalhar em diversas direções o que estava junto, mas acrescentar e aumentar, preenchendo os vazios, ou seja, os territórios ainda fora do radar. O que na verdade onde se lê «Dispersão» deve ler-se «Expansão». O conceito de «Dispersão» implicaria reduzir a densidade num ponto, espalhando-a por um território muito mais vasto. Ora, não é nada disso que é proposto. Não há qualquer medida no sentido de conter e muito menos diminuir a atividade turística, até porque o executivo tem rejeitado sistematicamente toda e qualquer proposta de moratória de licenciamento de novos hotéis.
    • 2. A «sustentabilidade» amiúde convocada ao longo do documento tem o valor de conceito talismã, isto é, um conceito sem referente ou, se preferirem, uma palavra sem conteúdo mas, mesmo assim, um recurso discursivo valioso. Afinal, quem é contra a sustentabilidade? Ninguém, como é óbvio. Trata-se de um conceito plenamente consensual e suficientemente vago para lá caber meio mundo, mas mesmo assim o suficientemente mobilizador para legitimar a decisão política de converter toda a cidade num produto turístico. Pergunto onde estará a sustentabilidade, no sentido rigoroso da palavra, quando se pretende expandir a atividade turística a todas as freguesias e lugares, mantendo e ampliando  a pressão excessiva já existente no Centro Histórico/Baixa? A mim parece-me claro que as políticas expansionistas são tudo menos sustentáveis. Havendo um desequilíbrio, haveria que contrabalançar os pratos e não sobrecarregar um deles.

    O plano propriamente dito é relativamente simples e replica uma estratégia de dispersão do fluxo turístico já seguida noutras cidades como Amsterdão (há mais de 10 anos), Copenhaga e Barcelona. Pegando neste ultimo exemplo, em contraste com a “estratégia” portuense que se fica pela criação de bairros temáticos, ou seja, por uma única linha de actuação, o plano de gestão catalão é verdadeiramente estratégico porque integra 12 linhas de actuação que são planeadas e geridas em conjunto, a saber: gestão de espaços urbanos, fiscalidade, mobilidade turística, alojamento, segurança, sustentabilidade, digitalização, desenvolvimento económico e retorno social, estratégia territorial, promoção, conhecimento e governança. Ora, no nosso caso ficamo-nos apenas pela estratégia territorial e mesmo assim, reduzindo-a à óptica exclusiva de destino turístico, simplificando-a sob a forma de um plano de “dispersão” dos fluxos. Em que consiste realmente a estratégia? Dividir a cidade em 8 “quarteirões”, sendo que é atribuído a cada um destes uma identidade temática que se supõe valorizá-lo enquanto destino turístico:

    Qualquer portuense ou qualquer outra pessoa que conheça razoavelmente bem a cidade não deixará de ler esta lista sem abanar a cabeça ou até mesmo soltar alguma gargalhada ou impropério. Nada disto parece fazer grande sentido. O zonamento temático não tem lá grande aderência à realidade. A ser levado a sério, seria algo que iria na direção oposta da ideia de  «cidade líquida» de Paulo Cunha e Silva, recordam-se?:

    «A cultura expande-se e derrama-se sobre os territórios e a população, dissolvendo preconceitos e lugares-comuns. Toda a gente é convocada para a grande aventura da cidade».

    Talvez não seja exatamente a mesma cidade. Talvez coexistam duas cidades que ocupam em simultâneo o mesmo território: a cidade vivida e a cidade para inglês ver. Nada contra. De certo modo existem muitas cidades dentro de cada cidade. O problema é que a esquizofrenia começa quando é a própria câmara municipal a gerir o território em função do olhar do turista. Temos duas alternativas. Uma é encolher os ombros e reduzir estas estratégias a mero palavreado que, quanto muito, gerará, para indiferença geral, incluindo dos próprios turistas, mais uma campanha de comunicação. Faz-se a campanha, cria-se mais um website em inglês, plantam-se um mupis, imprimem-se uns flyers, talvez se organizem uns eventos mais ou menos ad hoc, as empresas consultoras contratadas e assessores recebem a sua quota parte e a vida continua, como sempre. Outra alternativa é levarmos a sério este tipo de propostas e acreditar que estas têm como objectivo moldar o território. Neste cenário, teremos a gestão da cidade condicionada pelas urgências e necessidades de um sector de atividade económica que se afirma cada vez mais como um sector hegemónico. Atendendo ao ponto crítico a que se chegou na Baixa e Centro Histórico, será sensato levarmos a sério esta estratégia. Há, de facto, a vontade e a capacidade de moldar o território através de uma espécie de engenharia social. Este plano é um takeover do resto da cidade pela indústria turística.

    É evidente que o que documento propõe é uma série de oito narrativas para as oito zonas do Porto. Estas narrativas, por mais extravagantes que possam parecer em alguns casos, contribuem para a modulação de percepção que os outros têm sobre a cidade mas também sobre a própria forma como os residentes percepcionam a sua própria a cidade. Antes de mais nada, vêm-se, assim de repente, sem ter sido auscultados figurantes de uma narrativa que não está a ser escrita por eles. Analisando com algum pormenor estas narrativas podemos com alguma facilidade identificar alguns pontos problemáticos, pontos em que parece haver um entorse da memória do lugar de forma a caber dentro da narrativa. Veja-se o caso do Bonfim, o quarteirão descrito como o lugar da juventude, da arte e do empreendedorismo. Compreensivelmente, dentro desta narrativa não é conveniente que seja lembrado que o Museu Militar também foi a sede da antiga PIDE/DGS e que representa um dos lugares de memória da ditadura do Estado Novo e da luta antifascista. Aliás, aproveito para lembrar que as propostas para transformar este edifício em Museu da Resistência têm sido sistematicamente ignoradas. Esta memória destoa da narrativa proposta. Pode ser incomodativa para a sensibilidade turística avessa a estas coisas. Vai daí, é completamente obliterada. Tal como é obliterado o passado industrial do Bonfim e Campanhã. Campanhã aparece aqui trasvestida num idílio semirrural passando por cima de toda a carga do passado industrial e operário da freguesia. Diria que foi uma identidade imaginada em modo à vol d’oiseau ou, neste caso, a partir do Google Maps.

    Nesta cidade imaginada por uma consultora qualquer, os residentes são paisagem que se destina a ser consumida de acordo com um guião em formato de destino turístico. Não interessa a memória historicamente fundamentada, não interessa o lugar. O que interessa é que encaixe na narrativa e que cumpra o papel de adereço.  Uma situação semelhante à dos transeuntes das passagens  descritos por Walter Benjamim:

    «Eles são observados a partir das janelas, mas não podem ver o que há por detrás delas».

    O turista move-se sob um manto da invisibilidade que lhe é conferido pelo anonimato, pela origem incerta e pela transitoriedade. Quem é aquele pessoa que nos olha e nos fotografa como se fossemos uma parte da paisagem? Não sabemos e nunca saberemos quem ele é. O nosso papel não é observarmos mas sermos observados. Fazemos parte da experiência que alguém empacotou e vendeu a alguém que a consumirá num weekend break entre os pastéis de nata e uma ida ao Bolhão de copo na mão. A câmara propõe a substituição da “Antiga, Mui Nobre, Sempre Leal e Invicta” cidade do Porto por uma cidade imaginária com as janelas viradas para os residentes-paisagem. De certa forma, quer queiramos quer não somos todos ativos de uma indústria omnívora. Uns entram no jogo e vendem ímans (ou algo que o valha). Outros, nem por isso.

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  • 74.000€ e 4 anos depois, o Plano de Pedonalização do Porto continua na gaveta

    (no Público de 2025/02/04)

    O Plano Esquecido

    Em 2019, o município do Porto adjudicou um Plano de Pedonalização da zona histórica por 74.000 €. Quase seis anos depois, o estudo permanece escondido. Após anos a pedir acesso ao documento, sem sucesso, sabemos agora que ele foi entregue pela consultora MPT em Maio de 2021. Entretanto, em Setembro de 2022 e Janeiro de 2023, o Vereador Pedro Baganha anunciava a sua apresentação pública iminente; até hoje, nada. A opacidade do silêncio que se abateu sobre o tema levanta questões legítimas sobre a viabilidade política ou técnica das propostas nele contidas. 

    Que Estudo é esse?

    O documento, intitulado ” Estudo de Caracterização, Diagnóstico e Definição de Estratégia de Intervenção para a Pedonalização na Zona Histórica do Porto”, tem 470 páginas e 14 autores; está agora disponível online na página do GARRA, para promover a discussão pública e aplicação, com os ajustes que forem necessários. 

    Apresenta uma análise da evolução urbana do Porto, começando por abordar temas como mobilidade sustentável, estrutura verde e estratégias urbanas. 
    Depois analisa individualmente cerca de 150 ruas e praças, avaliando aspectos como acessibilidade, mobilidade pedonal, iluminação e organização do espaço. Continua com a proposta de tornar “predominantemente pedonal” quase todo o centro histórico, e como tal se articula com a mobilidade ciclável, transporte público e estacionamento; apresentam-se ainda propostas de intervenção em 50 locais.

    Por fim, é apresentado um plano de acção a 2, 6 e 10 anos, com custo estimado de €120 milhões (só o metrobus da Boavista custou € 76 milhões), que permitirão transformar as zonas do Campo do Rou, Cais das Pedras, Bandeirinha, Miragaia e Vitória, Ribeira, Sé , Batalha, Guindais, Sol e Fontainhas. Nesta área, apenas haveria circulação automóvel em parte das vias mais largas, como a Marginal, a Mouzinho da Silveira, a Av. da Ponte e a Duque de Loulé, ficando as restantes “predominantemente pedonais”, com acesso motorizado apenas para transporte público e moradores.

    As Justificações da Câmara

    Terá o executivo municipal considerado que a proposta era demasiado ousada? Não sentiu na cidade abertura para este tipo de mudanças? Não caberia aos nossos líderes promover o esclarecimento da população, incluindo os seus interesses na transição dum espaço público completamente dominado pelo automóvel parado e em movimento para uma versão humanizada do Porto? Provavelmente ficariam surpreendidos com a adesão da população à mudança.

    Em resposta às questões da Vereadora Ilda Figueiredo, da CDU, na reunião de 27/1/2025, o Arq. Pedro Baganha afirmou (entre 1:02:35 e 1:04:06) que este estudo “serviu de base para a rede 20″, iniciativa apresentada em Julho/2023 e que em nada alterou a vivência das ruas abrangidas. Terá também servido de ponto de partida para a promessa, em Setembro/2024, de pedonalizar até 2026 troços de 23 ruas e travessas do centro; além de ser poucochinho face à dimensão do desafio (e ao proposto no Estudo), há eleições no fim de 2025. Ou seja, logo se vê. Afirmou ainda que “alguns dos pressupostos do estudo já estão ultrapassados porque o tempo passou”, que “o estudo não tem atualidade para ser apresentado” neste momento, e que contém “propostas que não são passíveis de ser acolhidas”. 

    Debater a pedonalização

    Na verdade, o Estudo apresenta propostas detalhadas que parecem manter relevância para os desafios atuais da mobilidade no Porto, mas ninguém melhor que o próprio Vereador (em cuja gaveta jaz o estudo há 44 meses) para esclarecer as suas afirmações.

    A pedonalização do centro histórico exige compatibilizar os interesses de moradores, comerciantes, trabalhadores e visitantes locais, nacionais e estrangeiros. Mas ignorar um Estudo com esta qualidade e adiar a discussão e a tomada de medidas não é certamente o caminho para melhorarmos a vivência do Porto, que está muito atrasado nesta área.

    É por isso que vamos organizar um par de conversas sobre o tema para que portuenses, especialistas e políticos (incluindo os candidatos às próximas eleições) possam debater e contribuir; contamos consigo, Sr. Vereador?

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    https://www.garraporto.org

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  • O Turismo na Moda e a Entorse Urbana, ou Quando a Burocracia se transforma em Comédia

    Esta febre turística e este Porto de “moda” são, sem dúvida, uma oportunidade. Mas, como qualquer tendência levada ao extremo, acabam frequentemente por descambar no ridículo — algo que o artigo de David Afonso expõe de forma brilhante. E se as palavras dele já são eloquentes, estas imagens que aqui partilho superam qualquer descrição. Elas capturam, com precisão e ironia, a caricatura que por vezes se torna a cidade de excessos e contrastes.

    Estas ilustrações são do António Ferreira dos Santos, ou simplesmente F’Santos, arquitecto e cartoonista com uma visão tão apurada quanto mordaz. Poucos tinham o dom de traduzir, com tanto humor e crítica, o caos organizado que é o planeamento urbano em Portugal.

    Afinal, quem melhor para desenhar os absurdos da burocracia do que alguém que viveu por dentro das entranhas de uma repartição pública? Ele sabia, como ninguém, expor os disparates que passavam por “visões de futuro” e que, na prática, não eram mais do que exercícios de surrealismo administrativo.

    Infelizmente, já não temos F’Santos entre nós. Mas a sua obra continua, como um espelho irónico, a lembrar-nos de que, quando se trata de planeamento urbano em Portugal, a fronteira entre a comédia e a tragédia é sempre muito ténue.

    Agora, a propósito de que este governo decidiu atropelar o frágil equilíbrio entre o espaço Rural e o espaço Urbano com o Decreto-Lei n.º 117/2024, a que alguém se atreveu a chamar de “Entorse”. Esta nova peça legislativa mexe, com a leveza de um elefante numa loja de porcelanas, nas fronteiras entre o rural e o urbano, confundindo territórios e interesses.

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  • Simples de fazer, a CMP podia aprender

    Vi em Lisboa. Parece-me muito bem (presencial e via net), desde que depois a autarquia dê sequência ao que for lá discutido. Bom exemplo. No Porto, nas Assembleias Municipais, o Executivo normalmente retira-se antes do fim das intervenções dos cidadãos. Além de muito irritante e desrespeitador, é pouco inteligente.

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  • BOLHÃO OU O SEQUESTRO DA IDENTIDADE

    [Fonte: Ekonomista]

    Fazer compras no Mercado do Bolhão tornou-se, em larga medida, numa experiência estranha. Em primeiro lugar, porque uma parte cada vez maior dos produtos não se destina aos clientes locais. A frutaria é uma parafernália de frutas exóticas, tropicais, subtropicais, pós-tropicais, devidamente preparadas e acondicionadas para conforto imediato do turista. As peixeiras do Bolhão, outrora, a espinha dorsal da identidade do Mercado, competem pelo mesmo espaço que as sofisticadas tapas de ouriço do mar, lombinhos de sardinha marinados em citrinos, espetadinhas de gambas e vieiras na concha. Tudo bonito e colorido, servido para consumo imediato e no local. Também não me vejo a ir ao mercado comprar daquelas latas de sardinha coloridas estilo recuerdo de Portugal. Em segundo lugar, porque não é prático – e não é digno – estar a comprar hortaliças ou broa de Valongo no meio de turistas selfielizados, de copo de espumante na mão ou arrojados pelo chão do mercado a terem uma experiência gastronómica em público, sem qualquer pudor. Para terem uma ideia da estranheza da situação, imagine-se a ser surpreendido por um estranho a tirar-lhe fotografias enquanto escolhe uma couve-galega na secção de frescos do hipermercado ou na secção do talho do mesmo hipermercado, andarem por ali uns turistas de copo de vinho na mão a apontar para as carnes ou na secção de enlatados, uma família de turistas a improvisar um piquenique no chão. Seria de loucos não seria? Pois, é isso agora o Mercado do Bolhão.

    Quando se falava na necessidade urgente de se salvar o Bolhão, discutia-se com gravidade como poderia este, enquanto mercado de frescos, competir com as grandes superfícies. Percebemos agora que se tratava de um equívoco. O Bolhão, afinal, corre na mesma pista que o “quarteirão cultural” WOW e dos consórcios do Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau e da The Fantastic World of the Portuguese Sardine, ou seja, na pista das tradições inventadas e das denominações apropriadas. Diria que, em certos aspectos, o Bolhão é tanto um mercado de frescos como o WOW é um museu. A dado momento, terá ocorrido um curto circuito que nos trouxe até este triste equívoco, a uma instituição em crise de identidade. Não é exatamente um hibrido entre um mercado tradicional e um produto turístico, mas um mercado de frescos parasitado por um corpo estranho que tende a crescer e a sufocar o corpo hospedeiro.

    O meu ponto de vista é que nada disto é por acaso, mas foi antes procurado, programado e cuidadosamente planeado. O que o Bolhão é hoje é exatamente aquilo que era o que os seus promotores tinham em mente. Recuemos um pouco no tempo:

    Uma das operações que imagino de maior complexidade em todo este processo de reabilitação do mercado, terá decorrido da necessidade de se proteger e preservar in vitro os comerciantes históricos num mercado provisório instalado a poucos metros do Bolhão, na cave de um centro comercial. Foi a solução possível porque uma das premissas terá sido a de assegurar, durante o período de obras, que a componente humana do mercado continuasse a laborar dentro da mesma geografia para não romper a relação dos comerciantes com o lugar e com os seus clientes. Esta medida temporária e necessária transformou-se num autêntico programa de requalificação dos profissionais, nomeadamente no âmbito das regras de higiene e segurança alimentar. Mas não só. Durante os 4 anos e meio que durou a obra de reabilitação do edifício, os próprios vendedores entraram, de certa forma, em estaleiro. A analogia é abusiva mas mesmo assim permitam-ma: da mesma forma que o arquitecto no processo de reabilitação tem de fazer escolhas porque não é possível – e muitas vezes, nem sequer desejável – manter todo o preexistente, promovendo demolições pontuais de elementos dissonantes de forma a fazer vir ao de cima aquilo que ele interpreta como sendo o original e genuíno, também este exercício de preservação dos comerciantes implicou escolhas, uma espécie de trabalho de edição ou, se preferirem, de curadoria. Disciplinou-se a atividade, tipificando de antemão os produtos que cada um iria passar a vender, evitando um processo de canibalização interna potenciado por eventuais sobreposições da oferta. A Câmara passou então a ditar de forma mais rigorosa o que cada banca poderia ou não poderia comercializar.

    O comerciante do Bolhão é reinterpretado de maneira a enquadrar-se num projecto em que, de certa forma, já não serão apenas comerciantes. São essencializados como personagens-tipo com os quais se passará a paisagem do lugar em construção. A campanha do natal de 2016 é disso mesmo exemplar. A peixeira, o talhante e os vendedores de fruta, hortaliças e bacalhau são catapultados para mupis espalhados por toda a cidade. Tratou-se de uma campanha publicitária que procura promover as compras no Bolhão (provisório), mas que num segundo plano é também uma campanha publicitária à própria operação de reabilitação em curso e, logicamente, uma campanha de propaganda da câmara. Não são atores ou figurantes mas, de algum modo, os comerciantes são retratados cuidadosamente como se o fossem, isto é, como se fossem atores. Há aqui uma ascensão simbólica: as fotografias não representam indivíduos, mas comerciantes que, paradoxalmente, representam o papel de comerciantes. Se, por um lado, este exercício publicitário pode ser lido como um caminho para a tomada de consciência de si e de reconstrução autoestima debilitada (não esquecer situação precária em que durante tanto tempo habitaram o Bolhão à beira do colapso, bem como a situação de deslocados num mercado improvisado na cave de um shopping) através da exposição mediática e romantização da atividade, por outro lado, quando se olha para aquelas imagens tão encenadas ficamos com a clara impressão de que estes comerciantes «se não existissem, teriam de ser inventados» porque servem como uma luva às conveniências da estratégia de comunicação. Há uma clara apropriação da imagem destas pessoas para a partir daí se construir uma narrativa sobre o lugar que permita legitimar tudo o resto que vai acontecer nesse mesmo lugar.

    Há qualquer coisa naquelas fotografias que faz lembrar o trabalho de um mau arquitecto (ou de um arquitecto ingénuo, se preferirem apesar de não serem a mesma coisa) que numa obra de reabilitação de um edifício opta por preservar um elemento arquitectónico do edifício a que se propõe demolir apenas pelo seu valor pitoresco. E assim, surgem à vista, numa espécie de streptease exibicionista as paredes de pedra ou de tabique que originalmente estariam e deveriam estar vestidas de reboco, na tentativa de criar um certo pitoresco local de tão agrado dos olhos estrangeiros, mas absolutamente exótico para quem esteja familiarizado com as convenções da arquitectura histórica local. Esta invenção do pitoresco faz-se tendo-se em vista a perspectiva do outro que de outra maneira nem se aperceberia da peculiaridade de um tabique ou da beleza do granito. É que não basta estarem lá, correctamente preservadas. O prédio tem de ser esventrado e as entranhas expostas, ostensivamente exibidas. A singularidade é traduzida em pitoresco. Este carácter artificioso também está presente nas fotografias. Os comerciantes são retratados munidos dos elementos (a couve, o alho, a polvo, o bacalhau, o frango…) que conferem à composição uma qualidade de pitoresco. É já todo um programa que se desenha.

    Há um certo risco em se cair num cenário de ópera em que as características dos personagens e do cenário são destacadas de forma a torna-las evidentes e manobráveis para efeitos da economia da narrativa. Personagens e cenários demasiado parecidos com a vida real e, portanto, complexos, emperraria o fio da estória ou, como agora se diz, da experiência. A experiencia de um prédio histórico reabilitado no contexto de uma economia turística implica uma certa dose de efabulação e fantasia. Assim, em muitas obras de reabilitação encontramos um léxico simplificado: o soalho de pinho, as asnas à vista com aproveitamento do vão do telhado, a invenção de trapeiras e as já citadas paredes de tabique e pedra à vista. No fundo, como se de uma cenário de um filme de animação blockbuster se se tratasse. É com este léxico empobrecido que se conta a estória da cidade ao consumidor internacional. Não consigo deixar de olhar para as fotografias dos comerciantes sem estabelecer automaticamente a analogia com a reabilitação dos edifícios, no sentido em que há ali qualquer coisa de autenticidade artificialmente criada por um processo de simplificação que permite ao consumidor pouco familiarizado com a cultura local, descodificar os agentes e assimilar sem esforço a narrativa que lhe é proposta. É esse o efeito do pitoresco.

    É evidente que não se pretende dizer com isto que a preservação dos comerciantes – ou daqueles que que preferiram ou puderam escolher ficar – tenha sido uma decisão errada. Bem antes pelo contrário. Não seria compreensível e aceitável se do processo de reabilitação do mercado resultasse a exclusão dos comerciantes históricos, muitos deles tendo dedicado uma vida inteira aquela atividade e sendo reconhecidos pela população local como um símbolo da própria comunidade. Nunca é demais lembrar que tal não estava assegurado em todas as soluções apresentadas por executivos anteriores, nomeadamente na proposta apresentada durante o mandato de Rui Rio. A questão é que estamos num jogo duplo em que os comerciantes não só providenciam legumes, queijos, azeitonas, pão, peixe, carne, flores, etc… mas também o “boneco”, a imagem legitimadora de uma operação que vai muito para além deles próprios porque o Bolhão é hoje, sobretudo, um ativo capturado pela indústria turística. No fundo, deixaram de ser o centro do mercado e passaram a ser um acessório etnográfico de uma construção conceptual erigida segundo um modelo de negócio assente na venda a retalho de experiências padronizadas. Em suma, o negócio é mais entretimento de experiência que alimentação e o papel dos comerciantes históricos, é o de embrulhar o produto numa tipicidade que os menoriza e faz pouco da sua própria história.

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  • A propósito do Monumento Evocativo da Muralha de Aveiro

    O NORTE começa em Aveiro. Para ser mais preciso, no conglomerado urbano-industrial composto por Aveiro-Ílhavo. Já as Gafanhas e praias são de outra natureza, já são Região Centro. As Gafanhas são a porta que se abre à grande e misteriosa planície de areias e de pinhal (e não só) da Gândara que se estende entre o Vouga e o Mondego. Há razões geomorfológicas, históricas (os processos migratórios regionais, por exemplo) e culturais para se pensar assim. A Ria de Aveiro é a charneira, no litoral, entre uma região e outra. Mas voltemos, portanto, ao NORTE. Toda a minha vida foi feita à volta do eixo Aveiro-Porto, um dos territórios com maior densidade populacional, económica e de redes de comunicações viárias e ferroviárias. Sempre foi, para mim, uma espécie de cidade linear. Portanto, como este blog pretende ser um espaço de discussão situado a Norte, não posso deixar de trazer para aqui, de vez em quando, qualquer coisa sobre Aveiro. E confio que não faltará por aí quem se disponibilize a contribuir com publicações dedicadas a outros Nortes.


    Como este artigo de opinião foi previamente publicado no AVEIROMAG, deixo aqui apenas a citação do arranque e, caso tenham interesse, é só seguir o link para lerem o resto:

    Por fim, devemos lembrar que a muralha, na verdade, não desapareceu e continua presente, prestando um serviço inestimável à cidade e à região. A pedra serviu, sobretudo, para construir e fixar a boca da Barra, uma obra que salvou a economia de toda a região. Mas não só: serviu também para construir o primeiro liceu do país concebido especificamente para esse fim. Muitos aveirenses talvez não saibam que a Escola Homem Cristo é um marco na história da arquitetura nacional por ser o primeiro edifício projetado de raiz como liceu. Celebrar as muralhas de Aveiro obriga-nos a uma leitura mais alargada do território, da paisagem urbana e da própria história. Não se pode evocar a muralha sem considerar essa densidade. Mais do que uma torre de fantasia que apenas assinala de forma lacónica a pré-existência da muralha, seria preferível demarcar o seu perímetro no solo, assinalando a localização das portas e postigos. 


    LER O ARTIGO NA ÍNTEGRA

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  • Descobertas tardias

    A propósito dos “edifícios de tipo moradia”, previstos no PDM do Porto e aqui referidos pelo Alexandre Burmester, deparei-me recentemente com publicidade a mais uns, projectados para o espaço verde interior de um quarteirão de Nevogilde.

    Conheço relativamente bem a zona e é o que desconfiava: vão deitar abaixo o mostrengo que, não sei como, tinham há anos deixado plantar lá no meio. Fui recolher imagens ao Google Maps para ilustrar o resto deste texto, complementando as dos sites referidos.

    Eu sei que há entrada pela Rua de Corte Real, mas é possível construir assim de novo neste local? Segundo o PDM, a classificação do espaço em vários aspectos é: “Área verde de elevado valor ecológico”, “Zona mista”, “Espaços centrais – Área de edifícios de tipo moradia”, “Espaço consolidado”. Concordo que é “de tipo moradia”. Neste caso talvez “de tipo moradia em banda”, uma vez que é um prédio onde cabe uma banda inteira de música.

    E com isto descobri só agora que, segundo a definição actual do PDM, todo o bairro Rainha D. Leonor é, por maioria de razão, “de tipo moradia”. Claro que dantes lhe chamavam “de habitação colectiva”, ou “de blocos plurifamiliares”, e designações similares. Mas se calhar mal.

    Com jeitinho, descubro também que se calhar morei durante muitos anos num “edifício de tipo moradia”: tantos “3 pisos” (e sem elevador, já agora) como os novos de Nevogilde, com logradouro permeável.

    De facto, devíamos rever algumas designações actuais. Esta torre, por exemplo, também seria mais propriamente classificada como “de tipo moradia” porque, se virmos bem, não passa de várias moradias empilhadas umas em cima das outras.

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  • Notas sobre o Turismo

    [Uma plateia para a cidade. Foto: David Afonso]

    Esta é a Idade do Turismo, a era em que o Turismo se tornou na mais importante das indústrias e, desta vez, não somos periféricos. Esta revolução não chega até nós tardiamente e em segunda mão  No que diz respeito a este assunto, estamos mesmo no olho do furacão. Haverá razões substantivas para tal: esta é também a Idade da Mobilidade, a Idade Digital e nunca, apesar de tudo, houve antes tanta gente com tempo e dinheiro suficiente disponível para gastá-lo no pequeno luxo da viagem de lazer. Também lá haverá outras razões, estas mais difíceis de descortinar e recheadas de paradoxos. A começar pelo facto de nós, aqueles que resmungamos todo o santo dia contra os turistas, viramos a casaca, pegamos na mala e fazemo-nos de nós próprios turistas do dia para noite. Tal como o gato de Schrödinger que está morto e vivo ao mesmo tempo, todos nós somos ao mesmo tempo turistas e locals. Sim, isto tem qualquer coisa de esquizofrénico, mas não acaba por aqui. Mesmo quando dentro da farda de turista, somos acossados por uma contínua espécie de dissonância cognitiva: todo o turista que é turista detesta turistas e procura convencer-se de que ele próprio não é um turista. Bem, pelo menos um turista como os outros. Talvez devamos reconhecer que a omnipotência da indústria turística levou à extinção do viajante. Não há mais terra incognita. É impossível tirar uma foto de um lugar sem apanhar outros turistas, quebrando assim o encantamento. E é o encantamento do único, do intocado, do autêntico, enfim de replicar a experiência de comer, passear, viver como os tais locals. Talvez por isso mesmo, a Time Out insista em elaborar listas dos lugares secretos – sem turistas,  entenda-se – para uma experiência gastronómica, para ver o pôr do sol, para… para tudo o que possam imaginar no vosso postal de férias. Como é óbvio, essas listas são um logro. E mesmo que não o fossem, assim que expostos, os segredos deixam de ser segredos. O que nos conduz à perplexidade quântica que resulta da constatação de que a simples  presença do turista altera a própria realidade. O que se vê, nem sequer é a cidade aos olhos de um turista, mas a cidade que assume a alteridade de cidade turística, assim uma espécie de cidade para inglês ver. Fabricamos autenticidade da melhor qualidade. Somos todos turistas uns dos outros. Isto é muito complicado e desconfio que permanecerá sempre em aberto, o mistério que estará por detrás deste ímpeto que leva milhões a todos os anos a deslocarem-se para um outro ponto do planeta, por uns dias ou semanas, sem qualquer finalidade evidente. Não é fácil perceber e muito menos explicar o que procuramos quando nos pomos dentro do fato de turista.

    *

    A globalização do turismo transformou não apenas a própria atividade do turismo, mas também a economia, as cidades, as sociedades, as pessoas. Quem nunca se sentiu figurante de encenação na sua própria cidade? Muitas vezes, dizemos que as nossas cidades transformaram-se em disneylândias. Percebe-se a ideia, mas não. A imagem não é perfeita. Os parques da diversão da Disney são concebidos de raíz com o propósito de venderem a ilusão do universo de fantasia. Os castelos não têm a pretensão de serem reais e, felizmente, também não as princesas. Há um acordo tácito entre as partes do qual excluímos, também tacitamente, as crianças: todos sabemos que tudo é falso, mas por umas horas fazemos de conta que não. Cumprimentamos o Mickey, tiramos fotografias com o Pato Donald, esperamos horas para só para cumprimentar Cinderela (eu sei, estive lá), assustamo-nos com o Capitão Gancho, passeamos nas ruas das cidades imaginárias como se fossem reais. Só também sabemos que não vive lá ninguém. Tal como o figurante despe o fato do Mickey ao final do dia, também a cidade vai dormir (bem cedo) e fecha as portas até ao dia seguinte. Os turistas são encaminhados para os hotéis estrategicamente montados nas redondezas que, mesmo que procurem prolongar a fantasia perseguindo os temas, já não enganam ninguém. É a vida real (pelo menos tão real quanto pode ser a vida num hotel). Ora, as nossas cidades não funcionam desta maneira. Não dá para fechar portas e mandar os turistas embora. Na verdade, o turismo urbano é omnívoro. Devora todas as horas, da manhã à noite. A experiência é total. E da mesma maneira que a cidade não pode fechar portas porque não é um parque temático, as pessoas, especialmente aquelas que trabalham na primeira linha nos hotéis, restaurantes, bares, comércio, guias, etc, não podem despir o fato e voltarem a serem elas mesmas. O ator que se veste de Mickey Mouse, sabe sempre que não é o Mickey Mouse. Em contrapartida, uma pessoa que se finge a ela própria numa representação para o turista, o que é ela ao fim do dia? Não pode fumar um cigarro a olhar para a máscara da Minnie Mouse com um sorriso irónico. Não há ironia possível quando somos figurantes na nossa própria cidade, o fato cola-se à pele.

    [Foto de autor desconhecido. O Tineye diz que anda aí desde Novembro 2023]

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    [PS: Para considerações mais desenvolvidas sobre o tema, consultar o meu post «Porto: Cidade de Turismo»]

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  • Bolhão: um corpo com dois mercados

    [Nota Prévia: Ao ler este post do Tiago, lembrei-me que tinha por aqui algumas anotações, ainda que incompletas, sobre o Mercado do Bolhão. O que é um mercado e a relação com a cidade e a coexistência de duas culturas distintas dentro do Bolhão são alguns dos pontos aqui abordados].

    Mercado do Bolhão 2024 [Foto: David Afonso]

    1. Penso que terá sido Le Goff a afirmar qualquer coisa como isto: a melhor maneira de se conhecer uma cidade é visitar o mercado local. Os mercados dão-nos uma visão dos hábitos de consumo dominantes numa determinada geografia. Não são locais de comércio generalista, como os modernos hipermercados, mas de comércio de precisão: vende-se o que se produz localmente em função das necessidades típicas dos fregueses locais. Idealmente reflectem, não só a apetência do consumo local por determinados produtos (peixe fresco, bacalhau, carne de porco, couves, etc…), apetência essa que varia muito de geografia para geografia por estarem enraizadas nos hábitos, costumes e tradições específicas de cada terra, mas também a economia e produção do seu hinterland, ou seja, os produtos disponíveis são produzidos localmente ou num raio de proximidade que permita o abastecimento diário. Por essa razão, a oferta tende a ser bastante conservadora, refletindo no fundo, os gostos estabilizados ao longo de sucessivas gerações. Procuramos aquilo a que nos habituámos a comer. Pela mesma razão os agentes tendem a uma grande estabilidade. Não são raras histórias de vendedores que iniciam atividade ainda crianças e que a abandonam apenas no final da vida e de postos de venda que são passados de pais para filhos. Do mesmo modo, o grau de fidelização dos clientes é bastante elevado. Apesar de recorrerem em paralelo às grandes superfícies para a aquisição dos bens correntes, não quebram o hábito de ir ao mercado ao sábado, por exemplo, porque a verdade é que acabam por se estabelecerem relações de cumplicidade e confiança, quando não mesmo de amizade, entre comerciantes e fregueses. Portanto, quando observamos um mercado importa não apenas olhar para os produtos que estão à venda mas também para a interação entre os vários agentes porque daí poderemos extrair pistas importantes sobre alguns aspectos da sociedade de cada cidade (Nota: numa deslocação recente a Atenas, constatei que no mercado local praticamente todos os comerciantes de peixe eram, ao contrário do que eu estava habituado a ver, homens. Aliás, todo o ambiente do Varvakeios é predominantemente masculino, com a sua epítome na secção dos talhos onde abundam os bigodes e as pontas de cigarro no canto da boca. O ambiente é muito diferente da realidade portuguesa, sem pregões e com um maior distanciamento entre o vendedor e o cliente). 

    2. O Bolhão é um pouco isto tudo. Há produtos que encontramos no mercado mas não no supermercado e as relações entre clientes e vendedores são, digamos, muito intensas, com os vendedores num esforço contínuo de angariar clientela seja através de pregões, seja pela interpelação direta, seja pela negociação. Há uma envolvência sensorial de sons, cheiros e cores e um tipo de interação social que nem encontramos numa grande superfície e nem sequer é reproduzível, imitável. Por isso, quando voltei ao Bolhão depois da sua reabertura, ía um pouco apreensivo e, há que reconhecer, céptico. O projeto de reabilitação parece ter cumprido o objectivo. Podendo haver um outro detalhe a limar (nomeadamente nas bancadas), o projecto é muito mais capaz e adequado que os projectos anteriores. Apesar do respeito pela solução apresentada nos anos 90 pelo arquitecto Joaquim Massena, esta era, já à época, datada e  não respondia às necessidades e à evolução da percepção do que um mercado de frescos deveria ser. No final da primeira década de 2000, a solução apresentada pela Trancrone, a concretizar-se, seria uma autêntica aberração e implicaria a privatização do mercado, transformando-o numa espécie de shopping center. Em termos comparativos, o projecto do Nuno Valentim é muito mais evoluído até porque, no geral, incorpora de forma mais equilibrada os valores da preservação do património cultural edificado quando comparado com soluções anteriores. Fica, no entanto, a ferida da demolição dos pavilhões originais. Criticável também será a opção do município em adjudicar o projecto de reabilitação sem concurso púbico, recorrendo para um efeito a um estratagema, no mínimo, questionável. Agora, perante a obra concluída e aberta ao público, estas questões parece terem ficado lá para trás, embora haja outras de outra natureza.

    Projecto dos Pavilhões do Mercado do Bolhão [Fonte: AHMP]

    3. O mercado reflete, portanto, a cidade. Ora, como bem se sabe, a cidade do Porto sofreu importantes alterações nos últimos anos, sendo a mais dramática de todas a explosão do turismo. O turismo tem uma coisa curiosa: os turistas têm um contacto muito superficial com a cidade, no fundo, nos 2, 3 ou 4 dias que por cá passam, só lhe tocam muito ao de leve, antes de regressarem a casa e voltarem a sair para uma outra expedição a outra cidade qualquer. Caçam experiências, dizem. Percorrem, dentro da cidade, os circuitos mais ou menos instituídos, alimentam-se nos restaurantes especialmente montados para eles e pernoitam em alojamentos concebidos como parte da experiência imersiva. Poucos se aventuram para fora deste ecossistema artificialmente criado,  raros são os que prolongam a estadia para além dos três dias, quase nenhum consome os alimentos dos nativos ou comem versões concebidas para os foodies globais alimentarem o instagram. Mas, não obstante tocarem apenas na epiderme da cidade, deixam cicatrizes profundas nesta. Afectam as condições de alojamento dos residentes, o preço das casas, dos restaurantes e esplanadas sobem para irem ao encontro da maior disponibilidade da bolsa dos estrangeiros, condicionam o ritmo normal da cidade e até, mesmo sem querer, colocam em causa a identidade estabilizada da cidade. 

    Vista aérea do Mercado do Bolhão, 1948 [Fonte: AHMP]

    Não há turismo neutro, tal como não existe qualquer actividade económica neutra, que não molde o ambiente urbano de forma directa ou indirecta. Pense-se, por exemplo, no Porto da revolução industrial e de que como no século XIX e ainda século XX, a industrialização moldou o espaço urbano com a instalação das fábricas, com a importação de mão de obra do interior e a concentrou em bairros operários e em ilhas. Estamos a falar de mutações que transvasaram, como não poderia deixar de ser, a dimensão económica e vieram a introduzir importantes mutações no ADN cultural e identitário. Mesmo festas ancestrais como o S. João incorporaram as tradições desta horda de operários, residentes recém chegados e com hábitos em grande parte rurais, moldando a geografia e modos da celebração que se mantiveram mais ou menos estáveis até à atualidade. Quando se diz “Porto”, diz-se cidade burguesa e cidade do trabalho que teve o seu culminar com a industrialização que entrou pelo século XX adentro. Aliás, o próprio Mercado do Bolhão é uma materialização de um projeto de cidade profundamente devedor desta identidade urbana meio burguesa, meio industrial e meio (desculpem-me lá estas contas tão pouco ortodoxas) rural. Assim, também a ligeireza com que cada turista toca o chão do Porto (e de qualquer outra cidade), não deixará de repercutir ondas de choque que moldará o íntimo da identidade portuense. Não sabemos o que iremos ser no futuro, mas sabemos que não voltaremos a ser os mesmos, tal como não voltámos a ser os mesmos depois da industrialização. O Mercado do Bolhão reflete esta nova realidade económica e social, pelo que é sem escândalo que vemos ao lado das batatas e do peixe, as conservas de design e as lojas de vinho dirigidas aos consumidores que estão de passagem.

    As bancas gourmet, aos poucos, tomam o lugar das bancas de peixe.

    4. O mercado reflete a mutação da economia e a recomposição social da cidade. Os mais de 11 milhões de visitas registadas desde da reabertura serão, em grande parte, de turistas. Observar, participar, neste fluxo é mergulhar na corrente da cidade. É a cidade que se materializa ali à nossa frente naquele espaço confinado. O Bolhão é a sinédoque da cidade. E tal como nessa imensa generalização que chamamos “Porto” ou de uma forma mais vasta «cidade» ou de uma forma mais codificada “Invicta”, pressentimos os movimentos de acomodação à mudança mas temos alguma dificuldade em identificá-los e circunscrevê-los de uma forma precisa porque estamos a falar de fenómenos que têm o seu próprio ritmo e que se vão concretizando de forma discreta pelo espaço urbano, no Bolhão temos o Porto encapsulado, uma cidade em escala de laboratório. O equilíbrio entre dois mercados que partilham o mesmo espaço, o Bolhão Tradicional com a velha linhagem de comerciantes e o Bolhão hipsterizado com uma nova e variada estirpe de comerciantes representará, à sua própria escala, o jogo de forças que ocorre lá fora. É por isso importante ir seguindo o desenvolvimento dos acontecimentos, de como as partes aprenderão a conviver uma com a outra porque daí podemos extrair lições importantes sobre o nosso futuro comum. Eventualmente, poder-se-ia ter seguido um outro caminho. Teoricamente falando, teríamos tantas soluções para o Bolhão quantas aquelas que a nossa imaginação comportasse e a nossa bolsa permitisse. Uma vez definida esta solução híbrida, o sucesso ou insucesso do Bolhão passará sempre pelo equilíbrio entre a inovação e a tradição, entre os vendedores que sobreviveram e os novos que chegaram com produtos e posturas diferentes, entre os clientes locais e os turistas. Esta interdependência é um jogo difícil e precário. Os novos atores têm um carácter empresarial, logo expansionista por natureza e a tendência será começarem a aparecer cada vez mais bancas com produtos alinhados pelo que se julga ser o gosto do turista. Já os comerciantes tradicionais são conservadores por natureza, mantendo a escala do seu comércio e pouco disponíveis para mudarem. Para além disso, a sucessão familiar – ou outra modalidade de transmissão – da atividade é mais frágil porque não se trata apenas de um negócio mas de um modo de vida. O que é certo, é que a cultura do lugar mudou. Não diria que o Mercado do Bolhão vendeu a alma ou que perdeu a alma. Diria antes que o corpo do mercado alberga duas almas distintas. Pelo menos, por enquanto.

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  • Bolhão, 9h20

    Isto assim vazio, a esta hora, prova que o Bolhão já não é um mercado. O centro da cidade não tem habitantes e o que aqui se vende não seria a preços para eles.

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