Esta febre turística e este Porto de “moda” são, sem dúvida, uma oportunidade. Mas, como qualquer tendência levada ao extremo, acabam frequentemente por descambar no ridículo — algo que o artigo de David Afonso expõe de forma brilhante. E se as palavras dele já são eloquentes, estas imagens que aqui partilho superam qualquer descrição. Elas capturam, com precisão e ironia, a caricatura que por vezes se torna a cidade de excessos e contrastes.
Estas ilustrações são do António Ferreira dos Santos, ou simplesmente F’Santos, arquitecto e cartoonista com uma visão tão apurada quanto mordaz. Poucos tinham o dom de traduzir, com tanto humor e crítica, o caos organizado que é o planeamento urbano em Portugal.
Afinal, quem melhor para desenhar os absurdos da burocracia do que alguém que viveu por dentro das entranhas de uma repartição pública? Ele sabia, como ninguém, expor os disparates que passavam por “visões de futuro” e que, na prática, não eram mais do que exercícios de surrealismo administrativo.
Infelizmente, já não temos F’Santos entre nós. Mas a sua obra continua, como um espelho irónico, a lembrar-nos de que, quando se trata de planeamento urbano em Portugal, a fronteira entre a comédia e a tragédia é sempre muito ténue.
Agora, a propósito de que este governo decidiu atropelar o frágil equilíbrio entre o espaço Rural e o espaço Urbano com o Decreto-Lei n.º 117/2024, a que alguém se atreveu a chamar de “Entorse”. Esta nova peça legislativa mexe, com a leveza de um elefante numa loja de porcelanas, nas fronteiras entre o rural e o urbano, confundindo territórios e interesses.
Vi em Lisboa. Parece-me muito bem (presencial e via net), desde que depois a autarquia dê sequência ao que for lá discutido. Bom exemplo. No Porto, nas Assembleias Municipais, o Executivo normalmente retira-se antes do fim das intervenções dos cidadãos. Além de muito irritante e desrespeitador, é pouco inteligente.
Fazer compras no Mercado do Bolhão tornou-se, em larga medida, numa experiência estranha. Em primeiro lugar, porque uma parte cada vez maior dos produtos não se destina aos clientes locais. A frutaria é uma parafernália de frutas exóticas, tropicais, subtropicais, pós-tropicais, devidamente preparadas e acondicionadas para conforto imediato do turista. As peixeiras do Bolhão, outrora, a espinha dorsal da identidade do Mercado, competem pelo mesmo espaço que as sofisticadas tapas de ouriço do mar, lombinhos de sardinha marinados em citrinos, espetadinhas de gambas e vieiras na concha. Tudo bonito e colorido, servido para consumo imediato e no local. Também não me vejo a ir ao mercado comprar daquelas latas de sardinha coloridas estilo recuerdo de Portugal. Em segundo lugar, porque não é prático – e não é digno – estar a comprar hortaliças ou broa de Valongo no meio de turistas selfielizados, de copo de espumante na mão ou arrojados pelo chão do mercado a terem uma experiência gastronómica em público, sem qualquer pudor. Para terem uma ideia da estranheza da situação, imagine-se a ser surpreendido por um estranho a tirar-lhe fotografias enquanto escolhe uma couve-galega na secção de frescos do hipermercado ou na secção do talho do mesmo hipermercado, andarem por ali uns turistas de copo de vinho na mão a apontar para as carnes ou na secção de enlatados, uma família de turistas a improvisar um piquenique no chão. Seria de loucos não seria? Pois, é isso agora o Mercado do Bolhão.
Quando se falava na necessidade urgente de se salvar o Bolhão, discutia-se com gravidade como poderia este, enquanto mercado de frescos, competir com as grandes superfícies. Percebemos agora que se tratava de um equívoco. O Bolhão, afinal, corre na mesma pista que o “quarteirão cultural” WOW e dos consórcios do Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau e da The Fantastic World of the Portuguese Sardine, ou seja, na pista das tradições inventadas e das denominações apropriadas. Diria que, em certos aspectos, o Bolhão é tanto um mercado de frescos como o WOW é um museu. A dado momento, terá ocorrido um curto circuito que nos trouxe até este triste equívoco, a uma instituição em crise de identidade. Não é exatamente um hibrido entre um mercado tradicional e um produto turístico, mas um mercado de frescos parasitado por um corpo estranho que tende a crescer e a sufocar o corpo hospedeiro.
O meu ponto de vista é que nada disto é por acaso, mas foi antes procurado, programado e cuidadosamente planeado. O que o Bolhão é hoje é exatamente aquilo que era o que os seus promotores tinham em mente. Recuemos um pouco no tempo:
Uma das operações que imagino de maior complexidade em todo este processo de reabilitação do mercado, terá decorrido da necessidade de se proteger e preservar in vitro os comerciantes históricos num mercado provisório instalado a poucos metros do Bolhão, na cave de um centro comercial. Foi a solução possível porque uma das premissas terá sido a de assegurar, durante o período de obras, que a componente humana do mercado continuasse a laborar dentro da mesma geografia para não romper a relação dos comerciantes com o lugar e com os seus clientes. Esta medida temporária e necessária transformou-se num autêntico programa de requalificação dos profissionais, nomeadamente no âmbito das regras de higiene e segurança alimentar. Mas não só. Durante os 4 anos e meio que durou a obra de reabilitação do edifício, os próprios vendedores entraram, de certa forma, em estaleiro. A analogia é abusiva mas mesmo assim permitam-ma: da mesma forma que o arquitecto no processo de reabilitação tem de fazer escolhas porque não é possível – e muitas vezes, nem sequer desejável – manter todo o preexistente, promovendo demolições pontuais de elementos dissonantes de forma a fazer vir ao de cima aquilo que ele interpreta como sendo o original e genuíno, também este exercício de preservação dos comerciantes implicou escolhas, uma espécie de trabalho de edição ou, se preferirem, de curadoria. Disciplinou-se a atividade, tipificando de antemão os produtos que cada um iria passar a vender, evitando um processo de canibalização interna potenciado por eventuais sobreposições da oferta. A Câmara passou então a ditar de forma mais rigorosa o que cada banca poderia ou não poderia comercializar.
O comerciante do Bolhão é reinterpretado de maneira a enquadrar-se num projecto em que, de certa forma, já não serão apenas comerciantes. São essencializados como personagens-tipo com os quais se passará a paisagem do lugar em construção. A campanha do natal de 2016 é disso mesmo exemplar. A peixeira, o talhante e os vendedores de fruta, hortaliças e bacalhau são catapultados para mupis espalhados por toda a cidade. Tratou-se de uma campanha publicitária que procura promover as compras no Bolhão (provisório), mas que num segundo plano é também uma campanha publicitária à própria operação de reabilitação em curso e, logicamente, uma campanha de propaganda da câmara. Não são atores ou figurantes mas, de algum modo, os comerciantes são retratados cuidadosamente como se o fossem, isto é, como se fossem atores. Há aqui uma ascensão simbólica: as fotografias não representam indivíduos, mas comerciantes que, paradoxalmente, representam o papel de comerciantes. Se, por um lado, este exercício publicitário pode ser lido como um caminho para a tomada de consciência de si e de reconstrução autoestima debilitada (não esquecer situação precária em que durante tanto tempo habitaram o Bolhão à beira do colapso, bem como a situação de deslocados num mercado improvisado na cave de um shopping) através da exposição mediática e romantização da atividade, por outro lado, quando se olha para aquelas imagens tão encenadas ficamos com a clara impressão de que estes comerciantes «se não existissem, teriam de ser inventados» porque servem como uma luva às conveniências da estratégia de comunicação. Há uma clara apropriação da imagem destas pessoas para a partir daí se construir uma narrativa sobre o lugar que permita legitimar tudo o resto que vai acontecer nesse mesmo lugar.
Há qualquer coisa naquelas fotografias que faz lembrar o trabalho de um mau arquitecto (ou de um arquitecto ingénuo, se preferirem apesar de não serem a mesma coisa) que numa obra de reabilitação de um edifício opta por preservar um elemento arquitectónico do edifício a que se propõe demolir apenas pelo seu valor pitoresco. E assim, surgem à vista, numa espécie de streptease exibicionista as paredes de pedra ou de tabique que originalmente estariam e deveriam estar vestidas de reboco, na tentativa de criar um certo pitoresco local de tão agrado dos olhos estrangeiros, mas absolutamente exótico para quem esteja familiarizado com as convenções da arquitectura histórica local. Esta invenção do pitoresco faz-se tendo-se em vista a perspectiva do outro que de outra maneira nem se aperceberia da peculiaridade de um tabique ou da beleza do granito. É que não basta estarem lá, correctamente preservadas. O prédio tem de ser esventrado e as entranhas expostas, ostensivamente exibidas. A singularidade é traduzida em pitoresco. Este carácter artificioso também está presente nas fotografias. Os comerciantes são retratados munidos dos elementos (a couve, o alho, a polvo, o bacalhau, o frango…) que conferem à composição uma qualidade de pitoresco. É já todo um programa que se desenha.
Há um certo risco em se cair num cenário de ópera em que as características dos personagens e do cenário são destacadas de forma a torna-las evidentes e manobráveis para efeitos da economia da narrativa. Personagens e cenários demasiado parecidos com a vida real e, portanto, complexos, emperraria o fio da estória ou, como agora se diz, da experiência. A experiencia de um prédio histórico reabilitado no contexto de uma economia turística implica uma certa dose de efabulação e fantasia. Assim, em muitas obras de reabilitação encontramos um léxico simplificado: o soalho de pinho, as asnas à vista com aproveitamento do vão do telhado, a invenção de trapeiras e as já citadas paredes de tabique e pedra à vista. No fundo, como se de uma cenário de um filme de animação blockbuster se se tratasse. É com este léxico empobrecido que se conta a estória da cidade ao consumidor internacional. Não consigo deixar de olhar para as fotografias dos comerciantes sem estabelecer automaticamente a analogia com a reabilitação dos edifícios, no sentido em que há ali qualquer coisa de autenticidade artificialmente criada por um processo de simplificação que permite ao consumidor pouco familiarizado com a cultura local, descodificar os agentes e assimilar sem esforço a narrativa que lhe é proposta. É esse o efeito do pitoresco.
É evidente que não se pretende dizer com isto que a preservação dos comerciantes – ou daqueles que que preferiram ou puderam escolher ficar – tenha sido uma decisão errada. Bem antes pelo contrário. Não seria compreensível e aceitável se do processo de reabilitação do mercado resultasse a exclusão dos comerciantes históricos, muitos deles tendo dedicado uma vida inteira aquela atividade e sendo reconhecidos pela população local como um símbolo da própria comunidade. Nunca é demais lembrar que tal não estava assegurado em todas as soluções apresentadas por executivos anteriores, nomeadamente na proposta apresentada durante o mandato de Rui Rio. A questão é que estamos num jogo duplo em que os comerciantes não só providenciam legumes, queijos, azeitonas, pão, peixe, carne, flores, etc… mas também o “boneco”, a imagem legitimadora de uma operação que vai muito para além deles próprios porque o Bolhão é hoje, sobretudo, um ativo capturado pela indústria turística. No fundo, deixaram de ser o centro do mercado e passaram a ser um acessório etnográfico de uma construção conceptual erigida segundo um modelo de negócio assente na venda a retalho de experiências padronizadas. Em suma, o negócio é mais entretimento de experiência que alimentação e o papel dos comerciantes históricos, é o de embrulhar o produto numa tipicidade que os menoriza e faz pouco da sua própria história.
O NORTE começa em Aveiro. Para ser mais preciso, no conglomerado urbano-industrial composto por Aveiro-Ílhavo. Já as Gafanhas e praias são de outra natureza, já são Região Centro. As Gafanhas são a porta que se abre à grande e misteriosa planície de areias e de pinhal (e não só) da Gândara que se estende entre o Vouga e o Mondego. Há razões geomorfológicas, históricas (os processos migratórios regionais, por exemplo) e culturais para se pensar assim. A Ria de Aveiro é a charneira, no litoral, entre uma região e outra. Mas voltemos, portanto, ao NORTE. Toda a minha vida foi feita à volta do eixo Aveiro-Porto, um dos territórios com maior densidade populacional, económica e de redes de comunicações viárias e ferroviárias. Sempre foi, para mim, uma espécie de cidade linear. Portanto, como este blog pretende ser um espaço de discussão situado a Norte, não posso deixar de trazer para aqui, de vez em quando, qualquer coisa sobre Aveiro. E confio que não faltará por aí quem se disponibilize a contribuir com publicações dedicadas a outros Nortes.
Como este artigo de opinião foi previamente publicado no AVEIROMAG, deixo aqui apenas a citação do arranque e, caso tenham interesse, é só seguir o link para lerem o resto:
Por fim, devemos lembrar que a muralha, na verdade, não desapareceu e continua presente, prestando um serviço inestimável à cidade e à região. A pedra serviu, sobretudo, para construir e fixar a boca da Barra, uma obra que salvou a economia de toda a região. Mas não só: serviu também para construir o primeiro liceu do país concebido especificamente para esse fim. Muitos aveirenses talvez não saibam que a Escola Homem Cristo é um marco na história da arquitetura nacional por ser o primeiro edifício projetado de raiz como liceu. Celebrar as muralhas de Aveiro obriga-nos a uma leitura mais alargada do território, da paisagem urbana e da própria história. Não se pode evocar a muralha sem considerar essa densidade. Mais do que uma torre de fantasia que apenas assinala de forma lacónica a pré-existência da muralha, seria preferível demarcar o seu perímetro no solo, assinalando a localização das portas e postigos.
A propósito dos “edifícios de tipo moradia”, previstos no PDM do Porto e aqui referidos pelo Alexandre Burmester, deparei-me recentemente com publicidade a mais uns, projectados para o espaço verde interior de um quarteirão de Nevogilde.
Conheço relativamente bem a zona e é o que desconfiava: vão deitar abaixo o mostrengo que, não sei como, tinham há anos deixado plantar lá no meio. Fui recolher imagens ao Google Maps para ilustrar o resto deste texto, complementando as dos sites referidos.
Eu sei que há entrada pela Rua de Corte Real, mas é possível construir assim de novo neste local? Segundo o PDM, a classificação do espaço em vários aspectos é: “Área verde de elevado valor ecológico”, “Zona mista”, “Espaços centrais – Área de edifícios de tipo moradia”, “Espaço consolidado”. Concordo que é “de tipo moradia”. Neste caso talvez “de tipo moradia em banda”, uma vez que é um prédio onde cabe uma banda inteira de música.
E com isto descobri só agora que, segundo a definição actual do PDM, todo o bairro Rainha D. Leonor é, por maioria de razão, “de tipo moradia”. Claro que dantes lhe chamavam “de habitação colectiva”, ou “de blocos plurifamiliares”, e designações similares. Mas se calhar mal.
Com jeitinho, descubro também que se calhar morei durante muitos anos num “edifício de tipo moradia”: tantos “3 pisos” (e sem elevador, já agora) como os novos de Nevogilde, com logradouro permeável.
De facto, devíamos rever algumas designações actuais. Esta torre, por exemplo, também seria mais propriamente classificada como “de tipo moradia” porque, se virmos bem, não passa de várias moradias empilhadas umas em cima das outras.
Esta é a Idade do Turismo, a era em que o Turismo se tornou na mais importante das indústrias e, desta vez, não somos periféricos. Esta revolução não chega até nós tardiamente e em segunda mão No que diz respeito a este assunto, estamos mesmo no olho do furacão. Haverá razões substantivas para tal: esta é também a Idade da Mobilidade, a Idade Digital e nunca, apesar de tudo, houve antes tanta gente com tempo e dinheiro suficiente disponível para gastá-lo no pequeno luxo da viagem de lazer. Também lá haverá outras razões, estas mais difíceis de descortinar e recheadas de paradoxos. A começar pelo facto de nós, aqueles que resmungamos todo o santo dia contra os turistas, viramos a casaca, pegamos na mala e fazemo-nos de nós próprios turistas do dia para noite. Tal como o gato de Schrödinger que está morto e vivo ao mesmo tempo, todos nós somos ao mesmo tempo turistas e locals. Sim, isto tem qualquer coisa de esquizofrénico, mas não acaba por aqui. Mesmo quando dentro da farda de turista, somos acossados por uma contínua espécie de dissonância cognitiva: todo o turista que é turista detesta turistas e procura convencer-se de que ele próprio não é um turista. Bem, pelo menos um turista como os outros. Talvez devamos reconhecer que a omnipotência da indústria turística levou à extinção do viajante. Não há mais terra incognita. É impossível tirar uma foto de um lugar sem apanhar outros turistas, quebrando assim o encantamento. E é o encantamento do único, do intocado, do autêntico, enfim de replicar a experiência de comer, passear, viver como os tais locals. Talvez por isso mesmo, a Time Out insista em elaborar listas dos lugares secretos – sem turistas, entenda-se – para uma experiência gastronómica, para ver o pôr do sol, para… para tudo o que possam imaginar no vosso postal de férias. Como é óbvio, essas listas são um logro. E mesmo que não o fossem, assim que expostos, os segredos deixam de ser segredos. O que nos conduz à perplexidade quântica que resulta da constatação de que a simples presença do turista altera a própria realidade. O que se vê, nem sequer é a cidade aos olhos de um turista, mas a cidade que assume a alteridade de cidade turística, assim uma espécie de cidade para inglês ver. Fabricamos autenticidade da melhor qualidade. Somos todos turistas uns dos outros. Isto é muito complicado e desconfio que permanecerá sempre em aberto, o mistério que estará por detrás deste ímpeto que leva milhões a todos os anos a deslocarem-se para um outro ponto do planeta, por uns dias ou semanas, sem qualquer finalidade evidente. Não é fácil perceber e muito menos explicar o que procuramos quando nos pomos dentro do fato de turista.
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A globalização do turismo transformou não apenas a própria atividade do turismo, mas também a economia, as cidades, as sociedades, as pessoas. Quem nunca se sentiu figurante de encenação na sua própria cidade? Muitas vezes, dizemos que as nossas cidades transformaram-se em disneylândias. Percebe-se a ideia, mas não. A imagem não é perfeita. Os parques da diversão da Disney são concebidos de raíz com o propósito de venderem a ilusão do universo de fantasia. Os castelos não têm a pretensão de serem reais e, felizmente, também não as princesas. Há um acordo tácito entre as partes do qual excluímos, também tacitamente, as crianças: todos sabemos que tudo é falso, mas por umas horas fazemos de conta que não. Cumprimentamos o Mickey, tiramos fotografias com o Pato Donald, esperamos horas para só para cumprimentar Cinderela (eu sei, estive lá), assustamo-nos com o Capitão Gancho, passeamos nas ruas das cidades imaginárias como se fossem reais. Só também sabemos que não vive lá ninguém. Tal como o figurante despe o fato do Mickey ao final do dia, também a cidade vai dormir (bem cedo) e fecha as portas até ao dia seguinte. Os turistas são encaminhados para os hotéis estrategicamente montados nas redondezas que, mesmo que procurem prolongar a fantasia perseguindo os temas, já não enganam ninguém. É a vida real (pelo menos tão real quanto pode ser a vida num hotel). Ora, as nossas cidades não funcionam desta maneira. Não dá para fechar portas e mandar os turistas embora. Na verdade, o turismo urbano é omnívoro. Devora todas as horas, da manhã à noite. A experiência é total. E da mesma maneira que a cidade não pode fechar portas porque não é um parque temático, as pessoas, especialmente aquelas que trabalham na primeira linha nos hotéis, restaurantes, bares, comércio, guias, etc, não podem despir o fato e voltarem a serem elas mesmas. O ator que se veste de Mickey Mouse, sabe sempre que não é o Mickey Mouse. Em contrapartida, uma pessoa que se finge a ela própria numa representação para o turista, o que é ela ao fim do dia? Não pode fumar um cigarro a olhar para a máscara da Minnie Mouse com um sorriso irónico. Não há ironia possível quando somos figurantes na nossa própria cidade, o fato cola-se à pele.
[Foto de autor desconhecido. O Tineye diz que anda aí desde Novembro 2023]
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[PS: Para considerações mais desenvolvidas sobre o tema, consultar o meu post «Porto: Cidade de Turismo»]
[Nota Prévia: Ao ler este post do Tiago, lembrei-me que tinha por aqui algumas anotações, ainda que incompletas, sobre o Mercado do Bolhão. O que é um mercado e a relação com a cidade e a coexistência de duas culturas distintas dentro do Bolhão são alguns dos pontos aqui abordados].
Mercado do Bolhão 2024 [Foto: David Afonso]
1. Penso que terá sido Le Goff a afirmar qualquer coisa como isto: a melhor maneira de se conhecer uma cidade é visitar o mercado local. Os mercados dão-nos uma visão dos hábitos de consumo dominantes numa determinada geografia. Não são locais de comércio generalista, como os modernos hipermercados, mas de comércio de precisão: vende-se o que se produz localmente em função das necessidades típicas dos fregueses locais. Idealmente reflectem, não só a apetência do consumo local por determinados produtos (peixe fresco, bacalhau, carne de porco, couves, etc…), apetência essa que varia muito de geografia para geografia por estarem enraizadas nos hábitos, costumes e tradições específicas de cada terra, mas também a economia e produção do seu hinterland, ou seja, os produtos disponíveis são produzidos localmente ou num raio de proximidade que permita o abastecimento diário. Por essa razão, a oferta tende a ser bastante conservadora, refletindo no fundo, os gostos estabilizados ao longo de sucessivas gerações. Procuramos aquilo a que nos habituámos a comer. Pela mesma razão os agentes tendem a uma grande estabilidade. Não são raras histórias de vendedores que iniciam atividade ainda crianças e que a abandonam apenas no final da vida e de postos de venda que são passados de pais para filhos. Do mesmo modo, o grau de fidelização dos clientes é bastante elevado. Apesar de recorrerem em paralelo às grandes superfícies para a aquisição dos bens correntes, não quebram o hábito de ir ao mercado ao sábado, por exemplo, porque a verdade é que acabam por se estabelecerem relações de cumplicidade e confiança, quando não mesmo de amizade, entre comerciantes e fregueses. Portanto, quando observamos um mercado importa não apenas olhar para os produtos que estão à venda mas também para a interação entre os vários agentes porque daí poderemos extrair pistas importantes sobre alguns aspectos da sociedade de cada cidade (Nota: numa deslocação recente a Atenas, constatei que no mercado local praticamente todos os comerciantes de peixe eram, ao contrário do que eu estava habituado a ver, homens. Aliás, todo o ambiente do Varvakeios é predominantemente masculino, com a sua epítome na secção dos talhos onde abundam os bigodes e as pontas de cigarro no canto da boca. O ambiente é muito diferente da realidade portuguesa, sem pregões e com um maior distanciamento entre o vendedor e o cliente).
[Fonte: AHMP Fotografias do Mercado do Bolhão (Anos 80 e 90)]
2. O Bolhão é um pouco isto tudo. Há produtos que encontramos no mercado mas não no supermercado e as relações entre clientes e vendedores são, digamos, muito intensas, com os vendedores num esforço contínuo de angariar clientela seja através de pregões, seja pela interpelação direta, seja pela negociação. Há uma envolvência sensorial de sons, cheiros e cores e um tipo de interação social que nem encontramos numa grande superfície e nem sequer é reproduzível, imitável. Por isso, quando voltei ao Bolhão depois da sua reabertura, ía um pouco apreensivo e, há que reconhecer, céptico. O projeto de reabilitação parece ter cumprido o objectivo. Podendo haver um outro detalhe a limar (nomeadamente nas bancadas), o projecto é muito mais capaz e adequado que os projectos anteriores. Apesar do respeito pela solução apresentada nos anos 90 pelo arquitecto Joaquim Massena, esta era, já à época, datada e não respondia às necessidades e à evolução da percepção do que um mercado de frescos deveria ser. No final da primeira década de 2000, a solução apresentada pela Trancrone, a concretizar-se, seria uma autêntica aberração e implicaria a privatização do mercado, transformando-o numa espécie de shopping center. Em termos comparativos, o projecto do Nuno Valentim é muito mais evoluído até porque, no geral, incorpora de forma mais equilibrada os valores da preservação do património cultural edificado quando comparado com soluções anteriores. Fica, no entanto, a ferida da demolição dos pavilhões originais. Criticável também será a opção do município em adjudicar o projecto de reabilitação sem concurso púbico, recorrendo para um efeito a um estratagema, no mínimo, questionável. Agora, perante a obra concluída e aberta ao público, estas questões parece terem ficado lá para trás, embora haja outras de outra natureza.
Projecto dos Pavilhões do Mercado do Bolhão [Fonte: AHMP]
3. O mercado reflete, portanto, a cidade. Ora, como bem se sabe, a cidade do Porto sofreu importantes alterações nos últimos anos, sendo a mais dramática de todas a explosão do turismo. O turismo tem uma coisa curiosa: os turistas têm um contacto muito superficial com a cidade, no fundo, nos 2, 3 ou 4 dias que por cá passam, só lhe tocam muito ao de leve, antes de regressarem a casa e voltarem a sair para uma outra expedição a outra cidade qualquer. Caçam experiências, dizem. Percorrem, dentro da cidade, os circuitos mais ou menos instituídos, alimentam-se nos restaurantes especialmente montados para eles e pernoitam em alojamentos concebidos como parte da experiência imersiva. Poucos se aventuram para fora deste ecossistema artificialmente criado, raros são os que prolongam a estadia para além dos três dias, quase nenhum consome os alimentos dos nativos ou comem versões concebidas para os foodies globais alimentarem o instagram. Mas, não obstante tocarem apenas na epiderme da cidade, deixam cicatrizes profundas nesta. Afectam as condições de alojamento dos residentes, o preço das casas, dos restaurantes e esplanadas sobem para irem ao encontro da maior disponibilidade da bolsa dos estrangeiros, condicionam o ritmo normal da cidade e até, mesmo sem querer, colocam em causa a identidade estabilizada da cidade.
Vista aérea do Mercado do Bolhão, 1948 [Fonte: AHMP]
Não há turismo neutro, tal como não existe qualquer actividade económica neutra, que não molde o ambiente urbano de forma directa ou indirecta. Pense-se, por exemplo, no Porto da revolução industrial e de que como no século XIX e ainda século XX, a industrialização moldou o espaço urbano com a instalação das fábricas, com a importação de mão de obra do interior e a concentrou em bairros operários e em ilhas. Estamos a falar de mutações que transvasaram, como não poderia deixar de ser, a dimensão económica e vieram a introduzir importantes mutações no ADN cultural e identitário. Mesmo festas ancestrais como o S. João incorporaram as tradições desta horda de operários, residentes recém chegados e com hábitos em grande parte rurais, moldando a geografia e modos da celebração que se mantiveram mais ou menos estáveis até à atualidade. Quando se diz “Porto”, diz-se cidade burguesa e cidade do trabalho que teve o seu culminar com a industrialização que entrou pelo século XX adentro. Aliás, o próprio Mercado do Bolhão é uma materialização de um projeto de cidade profundamente devedor desta identidade urbana meio burguesa, meio industrial e meio (desculpem-me lá estas contas tão pouco ortodoxas) rural. Assim, também a ligeireza com que cada turista toca o chão do Porto (e de qualquer outra cidade), não deixará de repercutir ondas de choque que moldará o íntimo da identidade portuense. Não sabemos o que iremos ser no futuro, mas sabemos que não voltaremos a ser os mesmos, tal como não voltámos a ser os mesmos depois da industrialização. O Mercado do Bolhão reflete esta nova realidade económica e social, pelo que é sem escândalo que vemos ao lado das batatas e do peixe, as conservas de design e as lojas de vinho dirigidas aos consumidores que estão de passagem.
As bancas gourmet, aos poucos, tomam o lugar das bancas de peixe.
4. O mercado reflete a mutação da economia e a recomposição social da cidade. Os mais de 11 milhões de visitas registadas desde da reabertura serão, em grande parte, de turistas. Observar, participar, neste fluxo é mergulhar na corrente da cidade. É a cidade que se materializa ali à nossa frente naquele espaço confinado. O Bolhão é a sinédoque da cidade. E tal como nessa imensa generalização que chamamos “Porto” ou de uma forma mais vasta «cidade» ou de uma forma mais codificada “Invicta”, pressentimos os movimentos de acomodação à mudança mas temos alguma dificuldade em identificá-los e circunscrevê-los de uma forma precisa porque estamos a falar de fenómenos que têm o seu próprio ritmo e que se vão concretizando de forma discreta pelo espaço urbano, no Bolhão temos o Porto encapsulado, uma cidade em escala de laboratório. O equilíbrio entre dois mercados que partilham o mesmo espaço, o Bolhão Tradicional com a velha linhagem de comerciantes e o Bolhão hipsterizado com uma nova e variada estirpe de comerciantes representará, à sua própria escala, o jogo de forças que ocorre lá fora. É por isso importante ir seguindo o desenvolvimento dos acontecimentos, de como as partes aprenderão a conviver uma com a outra porque daí podemos extrair lições importantes sobre o nosso futuro comum. Eventualmente, poder-se-ia ter seguido um outro caminho. Teoricamente falando, teríamos tantas soluções para o Bolhão quantas aquelas que a nossa imaginação comportasse e a nossa bolsa permitisse. Uma vez definida esta solução híbrida, o sucesso ou insucesso do Bolhão passará sempre pelo equilíbrio entre a inovação e a tradição, entre os vendedores que sobreviveram e os novos que chegaram com produtos e posturas diferentes, entre os clientes locais e os turistas. Esta interdependência é um jogo difícil e precário. Os novos atores têm um carácter empresarial, logo expansionista por natureza e a tendência será começarem a aparecer cada vez mais bancas com produtos alinhados pelo que se julga ser o gosto do turista. Já os comerciantes tradicionais são conservadores por natureza, mantendo a escala do seu comércio e pouco disponíveis para mudarem. Para além disso, a sucessão familiar – ou outra modalidade de transmissão – da atividade é mais frágil porque não se trata apenas de um negócio mas de um modo de vida. O que é certo, é que a cultura do lugar mudou. Não diria que o Mercado do Bolhão vendeu a alma ou que perdeu a alma. Diria antes que o corpo do mercado alberga duas almas distintas. Pelo menos, por enquanto.
Isto assim vazio, a esta hora, prova que o Bolhão já não é um mercado. O centro da cidade não tem habitantes e o que aqui se vende não seria a preços para eles.
O discurso de inclusão parece ter chegado também ao urbanismo, onde até os edifícios começam a ganhar novas identidades.
No novo PDM do Porto, surgiu uma interpretação curiosa e peculiar sobre os géneros de edificação, com a introdução de categorias como “Edifícios do Tipo de Moradia”. Esta designação reflecte uma abordagem “inovadora”, mas que levanta dúvidas quanto à sua clareza e ao alinhamento com os conceitos técnicos já definidos.
O Estado Português, através do Decreto Regulamentar nº 5/2019, estabelece de forma clara os conceitos técnicos no domínio do ordenamento do território e do urbanismo. Segundo este decreto, as “moradias” são edifícios cuja totalidade é ocupada por um único fogo, subdivididas em categorias específicas:
Isolada: quando o edifício está completamente separado de qualquer outro edifício (com excepção dos seus edifícios anexos);
Geminada: quando os edifícios se agrupam dois a dois, justapondo-se através da empena;
Em banda: quando os edifícios se agrupam em conjunto de três ou mais edifícios contíguos.
Por outro lado, define também o conceito de “Apartamento”, quando o fogo é parte de um edifício, ao qual se acede através de espaços comuns, nomeadamente átrio, corredor, galeria ou patamar de escada.
No entanto, no PDM do Porto, a ideia de “moradia” é substituída pela categoria “Edifícios do Tipo de Moradia”, que não tem correspondência directa com estas definições claras do decreto. Este conceito parece criar uma área cinzenta, aplicando-se a locais onde se espera encontrar moradias, mas também podendo abranger outros usos. Assim, a classificação tradicional perde alguma precisão.
Este tipo de abordagem levanta ainda preocupações sobre o impacto que poderá ter na gestão urbana e no ordenamento do território, especialmente em zonas predominantemente residenciais. Enquanto o objectivo pode ser o de criar flexibilidade no uso do solo, a falta de clareza pode, de facto, gerar consequências significativas, não só na interpretação dos regulamentos, mas também na implementação de políticas urbanísticas eficazes.
Quando os conceitos são vagos ou demasiado flexíveis, abrem-se brechas para interpretações arbitrárias que podem levar a favorecimentos pouco transparentes e a decisões que carecem de uma lógica rigorosa e adequada à gestão pública.
Aqui seguem alguns exemplos das construções “Tipo Moradia”
Não sei se dá vontade de chorar ou rir. No PDM portuense, “moradia” não é bem “moradia”. É “Tipo Moradia”. Para quem não percebeu, é como se fôssemos dizer: “Esta casa é… tipo uma moradia, mas pode não ser. Depende do que ela quiser ser.” E o melhor? Não interessa onde. Pode ser no meio de um bairro de moradias ou num prédio de três andares com elevador e garagem subterrânea. O importante é respeitar os sentimentos do imóvel.
E assim, o Porto inaugurou a era da Arquitectura inclusiva. Um pequeno passo para os PDMs, um grande salto para a humanidade dos edifícios.
Pensei, por vezes, em revisitar este tema que, confesso, me deixa sempre num misto de indignação e resignação. Passado mais de um século, continuamos a olhar para este degredo urbano como quem assiste a um filme que nunca chega ao fim. Por um lado, porque parece que se tornou num tabu, algo que já ninguém quer discutir, como se o problema tivesse sido enterrado debaixo de décadas de omissões. Por outro, porque traz à memória o tal “grande” projecto de Siza Vieira que nunca viu a luz do dia, e a sensação de que, no Porto, temos o dom de perpetuar obras de Santa Engrácia. Aqui neste “Norte” é dos poucos lugares, onde vejo voltar a falar sobre este assunto.
O Porto tem destas coisas. Se olharmos para a construção do edifício da Alfândega e tivermos a paciência de estudar as demolições absurdas que se fizeram em nome dessa empreitada, talvez nem fiquemos tão chocados com o que aconteceu na Avenida da Ponte. Construir é sempre destruir, mas “destruir” património e cultura parece ser um hábito bem enraizado. Mas pior ainda que a tal avenida, que já é um monumento ao erro, é o desleixo total em relação à ponte D. Maria. Aqui, não é só a cidade que falha, é o país inteiro, incapaz de preservar um dos seus maiores legados de engenharia.
E volto a repetir: estas áreas não podem, não devem, nem têm qualquer justificação para serem pensadas como zonas mono-funcionais. Insistir em torná-las exclusivamente habitacionais, e pior, destinadas apenas a habitação social, seria o mesmo que voltar a criar guetos na área histórica da cidade. Não aprendemos nada? Estas zonas centrais têm de ter usos mistos, uma verdadeira urbanidade que lhes devolva vida e diversidade, ao invés de as condenar a espaços segregados e sem alma.
Quanto à Avenida propriamente dita, o problema é óbvio. Não faz sentido que mantenha as dimensões actuais, em particular a sua largura desproporcional. O espaço deveria ser redesenhado para se transformar numa rua com diferentes níveis e patamares, integrando praças e pracetas que criassem uma transição mais natural até à cota alta. Quanto às construções, estas deveriam ser pensadas com diversidade de desenho e autoria. Nada de megaprojectos uniformes que criam monstros urbanos como o quarteirão D. João I. A escala tem de ser humana, os edifícios têm de dialogar com a história do espaço, não esmagá-lo.
Não tenho muito mais a acrescentar ao que já disse anteriormente, mas reforço: é urgente abrir uma discussão pública sobre o programa a desenvolver para esta área da cidade. Mais do que isso, esta discussão deveria ser alargada a outras zonas problemáticas do Porto, que aqui já referi em texto anterior. No final, a solução teria de passar, inevitavelmente, por concursos de ideias — porque, se há coisa que nos falta, é planeamento. E planeamento sério, sem pressões políticas nem interesses escondidos. A cidade merece, mas sobretudo, as pessoas merecem. E é por elas que, ao fim de tanto tempo, ainda vale a pena insistir neste debate.