PORTO + NORTE


  • Notas sobre o Turismo

    [Uma plateia para a cidade. Foto: David Afonso]

    Esta é a Idade do Turismo, a era em que o Turismo se tornou na mais importante das indústrias e, desta vez, não somos periféricos. Esta revolução não chega até nós tardiamente e em segunda mão  No que diz respeito a este assunto, estamos mesmo no olho do furacão. Haverá razões substantivas para tal: esta é também a Idade da Mobilidade, a Idade Digital e nunca, apesar de tudo, houve antes tanta gente com tempo e dinheiro suficiente disponível para gastá-lo no pequeno luxo da viagem de lazer. Também lá haverá outras razões, estas mais difíceis de descortinar e recheadas de paradoxos. A começar pelo facto de nós, aqueles que resmungamos todo o santo dia contra os turistas, viramos a casaca, pegamos na mala e fazemo-nos de nós próprios turistas do dia para noite. Tal como o gato de Schrödinger que está morto e vivo ao mesmo tempo, todos nós somos ao mesmo tempo turistas e locals. Sim, isto tem qualquer coisa de esquizofrénico, mas não acaba por aqui. Mesmo quando dentro da farda de turista, somos acossados por uma contínua espécie de dissonância cognitiva: todo o turista que é turista detesta turistas e procura convencer-se de que ele próprio não é um turista. Bem, pelo menos um turista como os outros. Talvez devamos reconhecer que a omnipotência da indústria turística levou à extinção do viajante. Não há mais terra incognita. É impossível tirar uma foto de um lugar sem apanhar outros turistas, quebrando assim o encantamento. E é o encantamento do único, do intocado, do autêntico, enfim de replicar a experiência de comer, passear, viver como os tais locals. Talvez por isso mesmo, a Time Out insista em elaborar listas dos lugares secretos – sem turistas,  entenda-se – para uma experiência gastronómica, para ver o pôr do sol, para… para tudo o que possam imaginar no vosso postal de férias. Como é óbvio, essas listas são um logro. E mesmo que não o fossem, assim que expostos, os segredos deixam de ser segredos. O que nos conduz à perplexidade quântica que resulta da constatação de que a simples  presença do turista altera a própria realidade. O que se vê, nem sequer é a cidade aos olhos de um turista, mas a cidade que assume a alteridade de cidade turística, assim uma espécie de cidade para inglês ver. Fabricamos autenticidade da melhor qualidade. Somos todos turistas uns dos outros. Isto é muito complicado e desconfio que permanecerá sempre em aberto, o mistério que estará por detrás deste ímpeto que leva milhões a todos os anos a deslocarem-se para um outro ponto do planeta, por uns dias ou semanas, sem qualquer finalidade evidente. Não é fácil perceber e muito menos explicar o que procuramos quando nos pomos dentro do fato de turista.

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    A globalização do turismo transformou não apenas a própria atividade do turismo, mas também a economia, as cidades, as sociedades, as pessoas. Quem nunca se sentiu figurante de encenação na sua própria cidade? Muitas vezes, dizemos que as nossas cidades transformaram-se em disneylândias. Percebe-se a ideia, mas não. A imagem não é perfeita. Os parques da diversão da Disney são concebidos de raíz com o propósito de venderem a ilusão do universo de fantasia. Os castelos não têm a pretensão de serem reais e, felizmente, também não as princesas. Há um acordo tácito entre as partes do qual excluímos, também tacitamente, as crianças: todos sabemos que tudo é falso, mas por umas horas fazemos de conta que não. Cumprimentamos o Mickey, tiramos fotografias com o Pato Donald, esperamos horas para só para cumprimentar Cinderela (eu sei, estive lá), assustamo-nos com o Capitão Gancho, passeamos nas ruas das cidades imaginárias como se fossem reais. Só também sabemos que não vive lá ninguém. Tal como o figurante despe o fato do Mickey ao final do dia, também a cidade vai dormir (bem cedo) e fecha as portas até ao dia seguinte. Os turistas são encaminhados para os hotéis estrategicamente montados nas redondezas que, mesmo que procurem prolongar a fantasia perseguindo os temas, já não enganam ninguém. É a vida real (pelo menos tão real quanto pode ser a vida num hotel). Ora, as nossas cidades não funcionam desta maneira. Não dá para fechar portas e mandar os turistas embora. Na verdade, o turismo urbano é omnívoro. Devora todas as horas, da manhã à noite. A experiência é total. E da mesma maneira que a cidade não pode fechar portas porque não é um parque temático, as pessoas, especialmente aquelas que trabalham na primeira linha nos hotéis, restaurantes, bares, comércio, guias, etc, não podem despir o fato e voltarem a serem elas mesmas. O ator que se veste de Mickey Mouse, sabe sempre que não é o Mickey Mouse. Em contrapartida, uma pessoa que se finge a ela própria numa representação para o turista, o que é ela ao fim do dia? Não pode fumar um cigarro a olhar para a máscara da Minnie Mouse com um sorriso irónico. Não há ironia possível quando somos figurantes na nossa própria cidade, o fato cola-se à pele.

    [Foto de autor desconhecido. O Tineye diz que anda aí desde Novembro 2023]

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    [PS: Para considerações mais desenvolvidas sobre o tema, consultar o meu post «Porto: Cidade de Turismo»]

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  • Bolhão: um corpo com dois mercados

    [Nota Prévia: Ao ler este post do Tiago, lembrei-me que tinha por aqui algumas anotações, ainda que incompletas, sobre o Mercado do Bolhão. O que é um mercado e a relação com a cidade e a coexistência de duas culturas distintas dentro do Bolhão são alguns dos pontos aqui abordados].

    Mercado do Bolhão 2024 [Foto: David Afonso]

    1. Penso que terá sido Le Goff a afirmar qualquer coisa como isto: a melhor maneira de se conhecer uma cidade é visitar o mercado local. Os mercados dão-nos uma visão dos hábitos de consumo dominantes numa determinada geografia. Não são locais de comércio generalista, como os modernos hipermercados, mas de comércio de precisão: vende-se o que se produz localmente em função das necessidades típicas dos fregueses locais. Idealmente reflectem, não só a apetência do consumo local por determinados produtos (peixe fresco, bacalhau, carne de porco, couves, etc…), apetência essa que varia muito de geografia para geografia por estarem enraizadas nos hábitos, costumes e tradições específicas de cada terra, mas também a economia e produção do seu hinterland, ou seja, os produtos disponíveis são produzidos localmente ou num raio de proximidade que permita o abastecimento diário. Por essa razão, a oferta tende a ser bastante conservadora, refletindo no fundo, os gostos estabilizados ao longo de sucessivas gerações. Procuramos aquilo a que nos habituámos a comer. Pela mesma razão os agentes tendem a uma grande estabilidade. Não são raras histórias de vendedores que iniciam atividade ainda crianças e que a abandonam apenas no final da vida e de postos de venda que são passados de pais para filhos. Do mesmo modo, o grau de fidelização dos clientes é bastante elevado. Apesar de recorrerem em paralelo às grandes superfícies para a aquisição dos bens correntes, não quebram o hábito de ir ao mercado ao sábado, por exemplo, porque a verdade é que acabam por se estabelecerem relações de cumplicidade e confiança, quando não mesmo de amizade, entre comerciantes e fregueses. Portanto, quando observamos um mercado importa não apenas olhar para os produtos que estão à venda mas também para a interação entre os vários agentes porque daí poderemos extrair pistas importantes sobre alguns aspectos da sociedade de cada cidade (Nota: numa deslocação recente a Atenas, constatei que no mercado local praticamente todos os comerciantes de peixe eram, ao contrário do que eu estava habituado a ver, homens. Aliás, todo o ambiente do Varvakeios é predominantemente masculino, com a sua epítome na secção dos talhos onde abundam os bigodes e as pontas de cigarro no canto da boca. O ambiente é muito diferente da realidade portuguesa, sem pregões e com um maior distanciamento entre o vendedor e o cliente). 

    2. O Bolhão é um pouco isto tudo. Há produtos que encontramos no mercado mas não no supermercado e as relações entre clientes e vendedores são, digamos, muito intensas, com os vendedores num esforço contínuo de angariar clientela seja através de pregões, seja pela interpelação direta, seja pela negociação. Há uma envolvência sensorial de sons, cheiros e cores e um tipo de interação social que nem encontramos numa grande superfície e nem sequer é reproduzível, imitável. Por isso, quando voltei ao Bolhão depois da sua reabertura, ía um pouco apreensivo e, há que reconhecer, céptico. O projeto de reabilitação parece ter cumprido o objectivo. Podendo haver um outro detalhe a limar (nomeadamente nas bancadas), o projecto é muito mais capaz e adequado que os projectos anteriores. Apesar do respeito pela solução apresentada nos anos 90 pelo arquitecto Joaquim Massena, esta era, já à época, datada e  não respondia às necessidades e à evolução da percepção do que um mercado de frescos deveria ser. No final da primeira década de 2000, a solução apresentada pela Trancrone, a concretizar-se, seria uma autêntica aberração e implicaria a privatização do mercado, transformando-o numa espécie de shopping center. Em termos comparativos, o projecto do Nuno Valentim é muito mais evoluído até porque, no geral, incorpora de forma mais equilibrada os valores da preservação do património cultural edificado quando comparado com soluções anteriores. Fica, no entanto, a ferida da demolição dos pavilhões originais. Criticável também será a opção do município em adjudicar o projecto de reabilitação sem concurso púbico, recorrendo para um efeito a um estratagema, no mínimo, questionável. Agora, perante a obra concluída e aberta ao público, estas questões parece terem ficado lá para trás, embora haja outras de outra natureza.

    Projecto dos Pavilhões do Mercado do Bolhão [Fonte: AHMP]

    3. O mercado reflete, portanto, a cidade. Ora, como bem se sabe, a cidade do Porto sofreu importantes alterações nos últimos anos, sendo a mais dramática de todas a explosão do turismo. O turismo tem uma coisa curiosa: os turistas têm um contacto muito superficial com a cidade, no fundo, nos 2, 3 ou 4 dias que por cá passam, só lhe tocam muito ao de leve, antes de regressarem a casa e voltarem a sair para uma outra expedição a outra cidade qualquer. Caçam experiências, dizem. Percorrem, dentro da cidade, os circuitos mais ou menos instituídos, alimentam-se nos restaurantes especialmente montados para eles e pernoitam em alojamentos concebidos como parte da experiência imersiva. Poucos se aventuram para fora deste ecossistema artificialmente criado,  raros são os que prolongam a estadia para além dos três dias, quase nenhum consome os alimentos dos nativos ou comem versões concebidas para os foodies globais alimentarem o instagram. Mas, não obstante tocarem apenas na epiderme da cidade, deixam cicatrizes profundas nesta. Afectam as condições de alojamento dos residentes, o preço das casas, dos restaurantes e esplanadas sobem para irem ao encontro da maior disponibilidade da bolsa dos estrangeiros, condicionam o ritmo normal da cidade e até, mesmo sem querer, colocam em causa a identidade estabilizada da cidade. 

    Vista aérea do Mercado do Bolhão, 1948 [Fonte: AHMP]

    Não há turismo neutro, tal como não existe qualquer actividade económica neutra, que não molde o ambiente urbano de forma directa ou indirecta. Pense-se, por exemplo, no Porto da revolução industrial e de que como no século XIX e ainda século XX, a industrialização moldou o espaço urbano com a instalação das fábricas, com a importação de mão de obra do interior e a concentrou em bairros operários e em ilhas. Estamos a falar de mutações que transvasaram, como não poderia deixar de ser, a dimensão económica e vieram a introduzir importantes mutações no ADN cultural e identitário. Mesmo festas ancestrais como o S. João incorporaram as tradições desta horda de operários, residentes recém chegados e com hábitos em grande parte rurais, moldando a geografia e modos da celebração que se mantiveram mais ou menos estáveis até à atualidade. Quando se diz “Porto”, diz-se cidade burguesa e cidade do trabalho que teve o seu culminar com a industrialização que entrou pelo século XX adentro. Aliás, o próprio Mercado do Bolhão é uma materialização de um projeto de cidade profundamente devedor desta identidade urbana meio burguesa, meio industrial e meio (desculpem-me lá estas contas tão pouco ortodoxas) rural. Assim, também a ligeireza com que cada turista toca o chão do Porto (e de qualquer outra cidade), não deixará de repercutir ondas de choque que moldará o íntimo da identidade portuense. Não sabemos o que iremos ser no futuro, mas sabemos que não voltaremos a ser os mesmos, tal como não voltámos a ser os mesmos depois da industrialização. O Mercado do Bolhão reflete esta nova realidade económica e social, pelo que é sem escândalo que vemos ao lado das batatas e do peixe, as conservas de design e as lojas de vinho dirigidas aos consumidores que estão de passagem.

    As bancas gourmet, aos poucos, tomam o lugar das bancas de peixe.

    4. O mercado reflete a mutação da economia e a recomposição social da cidade. Os mais de 11 milhões de visitas registadas desde da reabertura serão, em grande parte, de turistas. Observar, participar, neste fluxo é mergulhar na corrente da cidade. É a cidade que se materializa ali à nossa frente naquele espaço confinado. O Bolhão é a sinédoque da cidade. E tal como nessa imensa generalização que chamamos “Porto” ou de uma forma mais vasta «cidade» ou de uma forma mais codificada “Invicta”, pressentimos os movimentos de acomodação à mudança mas temos alguma dificuldade em identificá-los e circunscrevê-los de uma forma precisa porque estamos a falar de fenómenos que têm o seu próprio ritmo e que se vão concretizando de forma discreta pelo espaço urbano, no Bolhão temos o Porto encapsulado, uma cidade em escala de laboratório. O equilíbrio entre dois mercados que partilham o mesmo espaço, o Bolhão Tradicional com a velha linhagem de comerciantes e o Bolhão hipsterizado com uma nova e variada estirpe de comerciantes representará, à sua própria escala, o jogo de forças que ocorre lá fora. É por isso importante ir seguindo o desenvolvimento dos acontecimentos, de como as partes aprenderão a conviver uma com a outra porque daí podemos extrair lições importantes sobre o nosso futuro comum. Eventualmente, poder-se-ia ter seguido um outro caminho. Teoricamente falando, teríamos tantas soluções para o Bolhão quantas aquelas que a nossa imaginação comportasse e a nossa bolsa permitisse. Uma vez definida esta solução híbrida, o sucesso ou insucesso do Bolhão passará sempre pelo equilíbrio entre a inovação e a tradição, entre os vendedores que sobreviveram e os novos que chegaram com produtos e posturas diferentes, entre os clientes locais e os turistas. Esta interdependência é um jogo difícil e precário. Os novos atores têm um carácter empresarial, logo expansionista por natureza e a tendência será começarem a aparecer cada vez mais bancas com produtos alinhados pelo que se julga ser o gosto do turista. Já os comerciantes tradicionais são conservadores por natureza, mantendo a escala do seu comércio e pouco disponíveis para mudarem. Para além disso, a sucessão familiar – ou outra modalidade de transmissão – da atividade é mais frágil porque não se trata apenas de um negócio mas de um modo de vida. O que é certo, é que a cultura do lugar mudou. Não diria que o Mercado do Bolhão vendeu a alma ou que perdeu a alma. Diria antes que o corpo do mercado alberga duas almas distintas. Pelo menos, por enquanto.

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  • Bolhão, 9h20

    Isto assim vazio, a esta hora, prova que o Bolhão já não é um mercado. O centro da cidade não tem habitantes e o que aqui se vende não seria a preços para eles.

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  • Urbanismo Woke

    Rua Afonso Baldaia

    O discurso de inclusão parece ter chegado também ao urbanismo, onde até os edifícios começam a ganhar novas identidades.

    No novo PDM do Porto, surgiu uma interpretação curiosa e peculiar sobre os géneros de edificação, com a introdução de categorias como “Edifícios do Tipo de Moradia”. Esta designação reflecte uma abordagem “inovadora”, mas que levanta dúvidas quanto à sua clareza e ao alinhamento com os conceitos técnicos já definidos.

    O Estado Português, através do Decreto Regulamentar nº 5/2019, estabelece de forma clara os conceitos técnicos no domínio do ordenamento do território e do urbanismo. Segundo este decreto, as “moradias” são edifícios cuja totalidade é ocupada por um único fogo, subdivididas em categorias específicas:

    • Isolada: quando o edifício está completamente separado de qualquer outro edifício (com excepção dos seus edifícios anexos);
    • Geminada: quando os edifícios se agrupam dois a dois, justapondo-se através da empena;
    • Em banda: quando os edifícios se agrupam em conjunto de três ou mais edifícios contíguos.

    Por outro lado, define também o conceito de “Apartamento”, quando o fogo é parte de um edifício, ao qual se acede através de espaços comuns, nomeadamente átrio, corredor, galeria ou patamar de escada.

    No entanto, no PDM do Porto, a ideia de “moradia” é substituída pela categoria “Edifícios do Tipo de Moradia”, que não tem correspondência directa com estas definições claras do decreto. Este conceito parece criar uma área cinzenta, aplicando-se a locais onde se espera encontrar moradias, mas também podendo abranger outros usos. Assim, a classificação tradicional perde alguma precisão.

    Este tipo de abordagem levanta ainda preocupações sobre o impacto que poderá ter na gestão urbana e no ordenamento do território, especialmente em zonas predominantemente residenciais. Enquanto o objectivo pode ser o de criar flexibilidade no uso do solo, a falta de clareza pode, de facto, gerar consequências significativas, não só na interpretação dos regulamentos, mas também na implementação de políticas urbanísticas eficazes.

    Quando os conceitos são vagos ou demasiado flexíveis, abrem-se brechas para interpretações arbitrárias que podem levar a favorecimentos pouco transparentes e a decisões que carecem de uma lógica rigorosa e adequada à gestão pública.

    Aqui seguem alguns exemplos das construções “Tipo Moradia”

    Av. da Boavista (fonte)

    Avenida Brasil (fonte)

    Rua de Fez

    Não sei se dá vontade de chorar ou rir. No PDM portuense, “moradia” não é bem “moradia”. É “Tipo Moradia”. Para quem não percebeu, é como se fôssemos dizer: “Esta casa é… tipo uma moradia, mas pode não ser. Depende do que ela quiser ser.” E o melhor? Não interessa onde. Pode ser no meio de um bairro de moradias ou num prédio de três andares com elevador e garagem subterrânea. O importante é respeitar os sentimentos do imóvel.

    E assim, o Porto inaugurou a era da Arquitectura inclusiva. Um pequeno passo para os PDMs, um grande salto para a humanidade dos edifícios.

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  • Avenida da Ponte (Regresso III)

    Pensei, por vezes, em revisitar este tema que, confesso, me deixa sempre num misto de indignação e resignação. Passado mais de um século, continuamos a olhar para este degredo urbano como quem assiste a um filme que nunca chega ao fim. Por um lado, porque parece que se tornou num tabu, algo que já ninguém quer discutir, como se o problema tivesse sido enterrado debaixo de décadas de omissões. Por outro, porque traz à memória o tal “grande” projecto de Siza Vieira que nunca viu a luz do dia, e a sensação de que, no Porto, temos o dom de perpetuar obras de Santa Engrácia. Aqui neste “Norte” é dos poucos lugares, onde vejo voltar a falar sobre este assunto.

    O Porto tem destas coisas. Se olharmos para a construção do edifício da Alfândega e tivermos a paciência de estudar as demolições absurdas que se fizeram em nome dessa empreitada, talvez nem fiquemos tão chocados com o que aconteceu na Avenida da Ponte. Construir é sempre destruir, mas “destruir” património e cultura parece ser um hábito bem enraizado. Mas pior ainda que a tal avenida, que já é um monumento ao erro, é o desleixo total em relação à ponte D. Maria. Aqui, não é só a cidade que falha, é o país inteiro, incapaz de preservar um dos seus maiores legados de engenharia.

    E volto a repetir: estas áreas não podem, não devem, nem têm qualquer justificação para serem pensadas como zonas mono-funcionais. Insistir em torná-las exclusivamente habitacionais, e pior, destinadas apenas a habitação social, seria o mesmo que voltar a criar guetos na área histórica da cidade. Não aprendemos nada? Estas zonas centrais têm de ter usos mistos, uma verdadeira urbanidade que lhes devolva vida e diversidade, ao invés de as condenar a espaços segregados e sem alma.

    Quanto à Avenida propriamente dita, o problema é óbvio. Não faz sentido que mantenha as dimensões actuais, em particular a sua largura desproporcional. O espaço deveria ser redesenhado para se transformar numa rua com diferentes níveis e patamares, integrando praças e pracetas que criassem uma transição mais natural até à cota alta. Quanto às construções, estas deveriam ser pensadas com diversidade de desenho e autoria. Nada de megaprojectos uniformes que criam monstros urbanos como o quarteirão D. João I. A escala tem de ser humana, os edifícios têm de dialogar com a história do espaço, não esmagá-lo.

    Não tenho muito mais a acrescentar ao que já disse anteriormente, mas reforço: é urgente abrir uma discussão pública sobre o programa a desenvolver para esta área da cidade. Mais do que isso, esta discussão deveria ser alargada a outras zonas problemáticas do Porto, que aqui já referi em texto anterior. No final, a solução teria de passar, inevitavelmente, por concursos de ideias — porque, se há coisa que nos falta, é planeamento. E planeamento sério, sem pressões políticas nem interesses escondidos. A cidade merece, mas sobretudo, as pessoas merecem. E é por elas que, ao fim de tanto tempo, ainda vale a pena insistir neste debate.

    (fotos: Arquivo da Câmara Municipal do Porto)

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  • Uma Cidade para a Avenida

    A Avenida da Ponte está no centro de um debate: habitação pública ou espaço verde? Sugere-se uma solução inovadora – o modelo Community Land Trust – que promete combater a especulação e garantir acessibilidade. Com Lisboa a liderar nas políticas habitacionais, fica a pergunta: como o Porto responderá?

    Fotografia: Maquete Projecto Avenida da Ponte (Serralves)

    1. Voltemos ao assunto da Avenida da Ponte. O debate que se desenvolveu aqui foi bastante interessante pela diversidade de pontos de vista apresentados: eu defendi a adaptação do projeto de Siza Vieira, sem museu, com habitação pública e com urbanização do lado nascente, ou seja, uma solução que, de certa forma, procura repor a memória da malha urbana que ali existia. O Alexandre Burmester pegou no mote, mas deu um importante contributo ao sugerir que a avenida não deve ser considerada isoladamente, devendo ser equacionada em conjunto com o Parque das Camélias e a área adjacente ao Viaduto da Duque de Loulé, duas áreas urbanas cinzentas. Além disso, reforçou insistentemente a necessidade de debate público sobre o tema. O TAF, concordando com a generalidade das propostas apresentadas, acrescentou que não é sequer obrigatório que a avenida seja mantida com a atual configuração, podendo ser exploradas outras soluções alternativas de design urbano e, aspeto a reter, sugeriu que esta operação poderia ser alavancada sob a forma de cooperativa. A Raquel assumiu uma posição contra a edificação no local, defendendo que esta área deveria ser reservada para um espaço verde; esta opinião foi secundada pelo José Pedro Tenreiro, que recuperou, para o efeito, o projeto do Távora. Ninguém se pronunciou no sentido do extremo oposto, ou seja, a favor de construção massiva com implementação de serviços de apoio, hotéis e lojas âncora (supermercados e outros). Mas não tenhamos grandes ilusões, porque não faltarão por aí quem defenda soluções deste género, e estes não deixarão de ter uma voz ativa e, talvez, decisiva, quando o projeto avançar.

    2. Entretanto, fui pensando no assunto e devo dizer que a minha posição atual já não é exatamente a mesma, pois ficou claro para mim que a proposta do Siza não é reciclável. No máximo, ajudou a estabelecer, em parte, as condições gerais para um eventual projeto de urbanização da avenida, isto é, repor a escala da edificação que existia no local antes das grandes demolições. A partir daqui, parece-me fazer todo o sentido promover um novo debate que conduza à realização de um concurso para apresentação de propostas que respondam da melhor maneira à emergência habitacional e ambiental. Também me parece claro que este processo não arrancará neste mandato. As declarações do vereador do urbanismo não passaram de conversa de circunstância, não havendo qualquer intenção séria em avançar com o descongelamento do projeto do Siza, até porque, se assim fosse, seria o próprio presidente da Câmara a anunciá-lo. Em todo o caso, mais tarde ou mais cedo, a cidade terá de se debruçar sobre o assunto e, agora que as eleições autárquicas estão aí à porta, este é o momento certo para chamar a comunidade e os partidos políticos ao debate.

    3. Lisboa anunciou a cedência de terrenos municipais para a construção de 1.500 fogos através do modelo cooperativo. Lisboa está mais adiantada do que o Porto neste tipo de iniciativas, mas Lisboa já aprovou a Carta Municipal de Habitação e tem em funcionamento o seu Conselho Municipal de Habitação. O Porto, nem por isso. A Carta deveria ter sido apresentada em junho, mas falharam a data. O vereador prometeu que no início de 2025 seria aprovada (o que quer dizer que o período de discussão pública irá coincidir, comodamente, com as festividades natalícias, querem apostar?). O Conselho Municipal de Habitação, apesar de recomendado no relatório da Estratégia Local de Habitação, nunca foi implementado e, atrevo-me a dizer, jamais o será enquanto este executivo estiver no poder. A cidade do Porto, aliás, vive a curiosa circunstância de ter aprovado um Plano Estratégico para o Turismo e de ter em funcionamento um Conselho Municipal do Turismo, mas não o equivalente para a habitação. Prioridades.

    4. O conjunto Avenida da Ponte / Viaduto Duque de Loulé / Parque das Camélias dispõe de área municipal e é constituído por solo urbanizável de domínio público municipal. Assim, qualquer projeto que aí se desenvolva necessariamente terá de contemplar habitação pública e serviços públicos. A pista lançada pelo TAF, apontando para uma solução baseada no modelo cooperativo, indica o caminho. Subscrevo, mas com uma pequena nuance. Atendendo à especificidade do local e do próprio mercado, a melhor solução, em termos de operacionalização, seria a criação de uma Community Land Trust (CLT), ou, em português, algo como Fundo Comunitário de Terras. Este modelo, amplamente testado nos E.U.A. e na Europa (ver o caso do Community Land Trust Bruxelles, premiado em 2021 pelo World Habitat Awards), consiste numa organização sem fins lucrativos que adquire e mantém a posse da terra (por 90 anos, por exemplo), com o objetivo de garantir o uso acessível e sustentável a longo prazo. O terreno é propriedade do CLT, enquanto as habitações (casas, apartamentos) são vendidas ou arrendadas a preços acessíveis aos residentes. Os proprietários das habitações têm um direito de uso, mas as regras do CLT ajudam a limitar a especulação imobiliária, garantindo que os imóveis continuem acessíveis para futuras gerações. Assim, o CLT separa a propriedade da terra da propriedade da habitação, de forma a proteger a comunidade contra a gentrificação e a aumentar a estabilidade de preços. O edificado pode ser propriedade privada ou comunitária conforme se trate de uma operação com parceiros particulares e/ou cooperativos e pode ser transacionado, mas dentro de limites pré-estabelecidos. A vantagem desta solução é que permite selecionar a opção mais adequada para cada situação; por exemplo, um CLT pode optar por um parceiro cooperativo para um lote e por um parceiro particular para outro (a dimensão reduzida do lote, por exemplo, pode requerer esta solução). O CLT permite conciliar ambos os tipos de abordagem, assegurando que o solo estará sempre ao abrigo da especulação futura e, aspeto muito importante, que o direito sobre o edificado possa ser transmitido de geração em geração, promovendo uma estabilidade geracional e comunitária. A flexibilidade do sistema permite ainda incorporar oferta de arrendamento controlado e terrenos ou imóveis já edificados com origem diversa, resultantes de doações, concessões ou aquisições a privados ou ao setor público. Acho particularmente interessante a possibilidade de conciliar a iniciativa privada com o interesse comum. Num contexto cultural centrado no indivíduo e na família, em que há uma maior inclinação para se ser dono da sua própria casa em vez de arrendá-la e em que subsiste alguma resistência a modelos de partilha de responsabilidades, típicos do modelo cooperativo, o CLT oferece a possibilidade de canalizar o interesse particular para o bem comum. Isto é, um particular pode construir dentro de uma CLT, cumprindo as regras pré-estabelecidas e na condição de, em caso de venda, ficar condicionado ao tecto máximo programado. Além disso, o CLT tipicamente adota um modelo de governança que promove a participação tripartida entre os residentes/proprietários, a câmara municipal e entidades externas relevantes, incluindo a vizinhança. Ou seja, o modelo baseia-se num conceito de comunidade alargada. Neste aspeto, vai mais longe do que o modelo estritamente cooperativo, que é confinado aos sócios da cooperativa.

    5. Talvez ainda tenhamos um longo caminho até começarmos a ponderar a aplicação deste modelo, que é, afinal, tão culturalmente disruptivo ao separar a posse da terra da propriedade do edificado. Há várias razões que explicam o conservadorismo atual. Talvez a mais forte seja precisamente a ideia de o terreno não ser transacionável, de estar excluído do negócio imobiliário, que é, atualmente, um dos grandes motores da economia. E, no entanto, este não é um modelo revolucionário nem sequer pioneiro. Já está mais do que testado. Lisboa, mesmo sem adotar este modelo, propõe transferir diretamente para as cooperativas terrenos para a construção de habitação a preços controlados. Vai ainda mais longe, acrescentando a todos os benefícios fiscais e isenções a oferta dos projetos de arquitetura e especialidades para suavizar os custos da operação. O Porto, nem por isso. Este texto é meramente prospetivo. Eu próprio tenho muitas dúvidas sobre a operacionalização de uma CLT e da sua compatibilização com o atual enquadramento jurídico. Convido todos os que tiverem contributos a fazer que não se acanhem e deixem aqui as suas opiniões. Enquanto os partidos se concentram na difícil escolha dos nomes que apresentarão como candidatos, façamos nós a discussão da cidade.

    David Afonso [david@norte.pt]

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  • Habitação: as escolhas de hoje serão o futuro de amanhã

    Foto: IHRU

    Com a falta gritante de habitação que atravessamos, e com a chegada do programa do PRR, instalou-se a discussão sobre como organizar, financiar e construir casas da forma mais rápida e eficiente. Incluído neste comportamento mexe-se e altera-se na legislação para facilitar licenciamentos e autorizar construção habitacional em qualquer lado, sem restrições. No entanto, não se entende que o foco deveria estar muito mais nas pessoas e nos programas habitacionais, do que nas meras quantidades e métodos de construção. Não que estas questões sejam irrelevantes, mas precisamente porque são elas que, no futuro, reflectirão o acerto — ou o erro — nas opções que agora tomamos. Percebo que este tema pareça pouco dizer à discussão, especialmente numa época em que as gerações estão cada vez mais distantes dos valores conceptuais e cada vez mais voltadas para os valores pragmáticos.

    Compreendo a nossa “Esquerda” política, que ainda hoje se refugia nos velhos argumentos das “lutas de classes” e defende fervorosamente os bairros sociais, como se fossem o bastião da justiça urbana. Não percebem, porém, que muitos desses bairros são autênticas nódoas na paisagem urbana, talvez um dos maiores erros do urbanismo moderno. Bairros que se caracterizam por espaços monofuncionais, de qualidade ambiental medíocre, construídos à pressa e com o mínimo de qualidade. Obrigam em gastar dinheiro continuamente neles, sempre para as eternas “obras de recuperação”, sem qualquer verdadeira visão de transformação.

    O crescimento urbano passado levou à construção das “ilhas” e, mais tarde, dos bairros camarários — sempre longe, sempre isolados, uma tentativa deliberada de esconder a “pobreza” nos confins das cidades. Hoje, as cidades estão saturadas de bairros que mais parecem vazios da malha urbana, espaços que se desligam do resto, onde os habitantes se habituaram a uma espécie de auto-exclusão, quase uma vergonha de lá viver. Importa, contudo, recordar que nem todos os bairros sociais são iguais, nem os seus habitantes formam uma massa homogénea. Seria mais do que justo, e mais do que necessário, promover uma verdadeira integração dos cidadãos em todos os espaços da cidade.

    Se pudesse propor uma solução para os bairros sociais, seria a de tentar erradicá-los tal como estão, transformando-os em zonas de uso misto, integrando-os em núcleos urbanos variados e distribuindo parte da população para outras áreas — e não apenas para a periferia. Qualquer espaço é válido, desde que passe pela diversidade de classes e funções urbanas. Evidentemente, estas soluções não devem ser impostas com tirania, nem envernizadas com paternalismo. A tirania de mandar e desmandar, sem ouvir as populações e sem construir um programa de trabalho conjunto, é o erro clássico que arrisca repetir-se. Quanto ao paternalismo, bem, é aquele que assume que os “mais desfavorecidos” não têm condições ou capacidade de escolha – e que, por isso, alguém tem sempre de decidir por eles.

    A responsabilidade está, em última análise, nas Câmaras e no Estado, que se por um lado devem promover a construção de habitação, por outro devem facilitar aos privados a mesma possibilidade. Que devem permitir que o mercado de arrendamento seja uma realidade, dando lugar ao investimento e à poupança, no lugar de ser a obra social que o Estado obriga no congelamento das rendas. E deveria ainda o Estado tomar posse dos inúmeros edifícios devolutos, não com autoritarismo, mas em parceria com os proprietários que não podem e não conseguem intervir, transformando a sua propriedade num qualquer direito patrimonial. Esses prédios devolutos, muitos deles, seriam oportunidades ideais para reabilitar e recriar quarteirões, transformando por fim a cidade. Devíamos todos afinar a discussão e acertar as vias mais correctas para promover a Habitação.

    Há uma urgência habitacional, sim, mas é a de resolver este paradoxo de isolamento e desigualdade e, com ele, transformar de facto a vida das pessoas.

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  • Um Passeio de Compras a 80 metros de altura


    Metro do Porto: O Serviço Público que se serve a si mesmo

    A Metro do Porto começou as suas obras em 2002. Já lá vão 22 anos. Desde então, é óbvio que as suas intervenções têm incomodado, e muito, as zonas onde operam. Não só quem por lá circula, mas principalmente os residentes e quem trabalha na área. Comerciantes e serviços foram gravemente afectados, alguns até tiveram de fechar portas. Tudo isto foi feito, dizem-nos, em nome do bem comum: para implementar um sistema de transporte público que vem tapar o buraco que os actuais transportes da Área Metropolitana do Porto deixaram escancarado. E, de facto, a cidade já teve transportes públicos de topo – nos anos 20 até aos 70, funcionava uma rede de eléctricos, tróleis e autocarros que era invejável. Depois, não sei bem a quem devemos culpar, mas conseguiram desmantelar essa rede excelente e, ao longo de várias opções e experiências falhadas, arruinaram um serviço que até então cumpria.

    A construção do Metro do Porto exigiu de todos nós um investimento significativo, tanto em termos financeiros quanto em qualidade de vida. No entanto, a sensação é de que as decisões ao longo dos anos foram tomadas sem levar em conta as necessidades e as opiniões dos cidadãos. A ausência de diálogo e a imposição de soluções prontas demonstram um distanciamento entre a empresa e a população, gerando um sentimento de frustração e desconfiança. Quem decide não ouve nem os autarcas, muito menos os cidadãos. Imbuídos de financiamentos europeus, com a promessa de fazer infraestruturas e reabilitar o espaço urbano, impõem ditatorialmente as suas escolhas, não ouvem o Planeamento e as câmaras, em vez de se insurgirem, acabam por consentir. Quanto aos cidadãos, coitados, que pouco ou nada percebem de transportes, o melhor mesmo é ficarem caladinhos. Afinal, os “especialistas” têm sempre razão – e quem somos nós para questionar os génios que nos dão filas e obras intermináveis como presente?

    Assim se passaram 22 anos. Conseguimos, de facto, um novo sistema de transportes, embora apenas uma pequena parte seja digna desse nome e esteja subterrânea. O resto é um “light rail” que se replica em várias cidades do mundo, mas que lá fora convive com os outros meios de transporte, sem asfixiar artérias centrais como a Avenida da República, em Gaia, ou a Brito Capelo, em Matosinhos.

    Agora, a cereja no topo do bolo é o “Metrobus”. Um projecto cujas vantagens ainda ninguém conseguiu explicar, cujas obras “acabadas” são um exemplo perfeito da falta de planeamento e execução, e cuja forma de financiamento assenta num investimento astronómico, que culmina com a construção de uma central de hidrogénio que à data nem sequer começou. E, tal como no resto, o Metro não ouve nem as queixas da autarquia, nem o “gozo” da população. Isto tem um nome que fica muito mal numa empresa pública: prepotência.

    Entretanto, as obras da linha Rosa e da linha Rubi seguem em frente. Mais um exemplo desta mentalidade de imposição. Atrasos de mais de um ano na linha Rubi? Claro, e ninguém dá uma explicação.

    A linha Rosa, por outro lado, tem sido a menina dos olhos da empresa, com direito a toda a sua propaganda. Até inclui uma ponte! Mas o pior é que, tal como de costume, os projectos nunca são o que parecem. Mostram-nos um esquisso inicial e depois, no final, apresentam-nos uma obra completamente diferente.

    Sobre a nova ponte D. Antónia Ferreira, destinada ao Metro e aos peões, nem vou discutir a sua necessidade ou a sua utilidade – o serviço aqui implantado devia estar na VCI, que um dia, mais cedo ou mais tarde, terá de ser transformada numa avenida urbana. Mas isso, infelizmente, é um assunto batido, que repito vezes sem conta. Contudo, neste caso específico, e face aos acontecimentos, é uma batalha para outra altura.

    A ponte, tal como está planeada, teria como função a cumprir: servir os transportes públicos – Metro, os meios de transporte leves – trotinetes, bicicletas, e os peões. Só que o Metro decidiu mudar os planos. Após ter apresentado umas imagens em 3D do encontro da ponte com as margens, onde representava do lado do Porto uma praça, esplanada e um elevador, assim como do lado de Gaia igualmente uma praça e um elevador, agora os elevadores nos pilares da ponte, que permitiriam o acesso fácil às populações ribeirinhas, foram riscados.

    Vamos então entender a brilhante lógica por detrás desta decisão. As populações de Massarelos até à Cantareira e, claro, os habitantes da Afurada, não têm acesso à ponte pedonal, porque o Metro assim o decidiu, na sua infinita sabedoria. Mas não se preocupem, há uma alternativa fantástica: subir uns modestos 80 metros de altura, dar um pulinho ao Arrábida Shopping ou ao Shopping Cidade do Porto, fazer umas comprinhas — porque o exercício abre o apetite para consumir — e só depois, devidamente carregados com sacos, seguir em direcção à ponte.

    Mas então, para quem é este “serviço público”? Porque, ao que tudo indica, não é para as pessoas. É uma empresa que se serve a si própria, de maneira tirana e arrogante, como se as necessidades dos cidadãos fossem um mero incómodo. E as autarquias? Estarão ao corrente disto? Mesmo com as suas queixas e exigências na Assembleia Municipal, será que vão continuar a consentir este teatro? Será preciso que sejamos nós, os cidadãos, a sair novamente à rua, como fizemos com o Metro da Boavista? Ou será que ainda há esperança de levar este Metro a uma verdadeira mesa de diálogo?
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    (publicado no Jornal de Notícias de 2024/11/02)

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  • As Livrarias que sobram e uma proposta para o Bolhão

    1. A FNAC da Rua de Santa Catarina fechou para dar lugar a uma loja Primark, e não parece haver planos para reabrir noutra localização. Ao contrário de Aveiro e Lisboa, a cidade do Porto ficará sem qualquer loja FNAC no centro. A partir de agora, só estará presente nos centros comerciais. Mesmo ali ao lado, a Livraria Latina também vai encerrar. Fundada nos anos 40, renasceu em 2005, passou para a Leya em 2010, e, com a mudança de controlo da própria Leya, a livraria será agora encerrada, tal como o restante grupo, excepto em Lisboa. Na Rua de Santa Catarina, restará apenas a minúscula Bertrand, escondida dentro do Via Catarina.

    2. A FNAC sempre foi criticada por ter contribuído para o desaparecimento das pequenas livrarias e lojas de discos. Não tenho a certeza se esse argumento se sustenta, mas deixemos essa discussão para outra altura. Outra crítica frequente é a de que a FNAC passou a vender de tudo menos livros. Concordo parcialmente. A primeira vez que vi uma batedeira à venda numa FNAC, ergui a minha sobrancelha direita até aos píncaros. No entanto, entre a parafernália, os livros estavam lá. Parece-me claro que faz todo o sentido uma cidade como o Porto ter, no centro, uma loja-âncora que ofereça um serviço abrangente, capaz de atrair diferentes públicos e faixas etárias. O meu próprio exemplo, como pai, ilustra isso: muitos livros da Xica foram comprados na FNAC, e, por arrasto, também alguns dos meus. Não me parece irrelevante o facto de funcionar como um equipamento cultural, oferecendo uma sala para apresentações, debates e conversas. Este tipo de serviço, intergeracional e multidimensional, só uma grande superfície consegue oferecer. As livrarias independentes ou especializadas complementam esta oferta, mas  focando nichos específicos.

    3. Com o encerramento da FNAC e da Latina-Leya, a oferta livreira fora dos centros comerciais torna-se mais pobre, pois deixa de existir um espaço acessível ao grande público. O que nos resta? Um conjunto de lojas de livros, livrarias independentes e especializadas. Deixo aqui um mapa com as opções existentes (se me esquecer de alguma, avisem). Faço uma distinção entre lojas de livros e livrarias: uma loja de livros é um ponto de venda, muitas vezes integrado num grupo maior, onde os livros são escolhidos de forma centralizada, frequentemente como resultado de contratos entre as redes e as editoras, privilegiando os bestsellers. Não existe trabalho de curadoria; os “livreiros” limitam-se a repor stock. A FNAC era um exemplo claro disso. Já as livrarias propriamente ditas são geridas por livreiros que fazem selecções baseadas em linhas temáticas ou ideológicas próprias, moldando as suas prateleiras ao perfil dos clientes e mantendo a capacidade de os surpreender. Aviso desde já que a Lello já nem sequer é para aqui chamada porque há muito que mudou de ramo.

    Seguem algumas das opções restantes:

    I. Lojas de Livros:

    Bertrand (Rua da Fábrica)
    1. Bertrand: Duas pequenas lojas no centro, uma no Via Catarina e outra na Rua da Fábrica. Uma loja maior no Shopping Cidade do Porto. A Bertrand é igual em todo o lado e apenas pela dimensão se distingue uma loja do outra. Não apresentam lá grande dinamismo na programação de atividades.
    2. Almedina: Na Rua de Ceuta, uma loja que vale sempre a pena visitar, sobretudo por quem procura livros jurídicos, mas creio que já teve melhores dias. Dantes, a cave era um lugar onde se podiam encontrar alguma coisas interessantes..
    3. Imprensa Nacional: Mais um depósito de edições da INCM do que uma livraria tradicional, mas útil. Fica na Cândido dos Reis.
    4. Livraria da Universidade do Porto (Reitoria): Outra espécie de depósito, desta vez da UP, sem o alcance de uma verdadeira livraria académica.

    II. Livrarias:

    Unicep
    1. Unicepe – Cooperativa Livreira de Estudantes do Porto: Fundada em 1963 e, por isso, é a decana das nossas livrarias. É uma das melhores e mais completas livrarias do Porto.  A organização das estantes por editora pode dificultar a tarefa a quem está habituado à organização por temas, mas o fundo de obras é uma bela mistura de novidades, de edições já com umas décadas, de editoras independentes e editoras mainstream. A própria livraria desenvolve atividade editorial e tem um intenso programa semanal de atividades. Qualquer um pode tornar-se sócio. Não só pelos descontos, mas também para apoiar esta casa que é caso único no panorama nacional. É bastante central, fica por ali aos Leões.
    2. Flâneur: Para mim, neste momento, a melhor livraria da cidade. Apesar de se tratar de uma livraria generalista, os títulos são criteriosamente seleccionados. É bem visível o dedo de livreiro. Atrevo-me a dizer que não vendem livros maus. Para além disso, também é editora e o catálogo é uma coleção de pérolas (fiquei tão contente quando vi que tinham traduzido e publicado Edmond Jabès…). Fica ali para os lados da Casa da Música, na Rua Fernandes Costa..
    3. Exclamação:  é outra livraria que não faria má figura em qualquer parte do mundo. Uma excelente livraria, onde também é visível o critério na escolha dos títulos. Fica por ali, na Rua Aníbal Cunha, perto da igreja de Cedofeita. E também é editora (publicou, por exemplo, a poesia completa do Joaquim Castro Caldas, um nome que deveria dizer alguma coisa a muita gente do Porto por ter carregado as noites de segunda-feira no Pinguim)
    4. Térmita: (na porta ao lado do Candelabro) é uma pequena livraria cheia de personalidade. Não é muito habitual o livreiro, durante o pagamento, demorar-se um instante com um livro e observar: «Fui eu quem escolheu este.. Leva aí um belo livro». Também costuma ter atividades paralelas.
    5. Socorro: Na Rua Guedes de Azevedo, na Baixa, a Socorro assume a sua dupla natureza de “record store” e “bookstore”. Não é nada má, embora precise de alimentar o fundo. Tem sempre algumas edições de autor e de pequenas editoras independentes, a par de uma oferta mais canónica. O espaço é extraordinário. 
    6. Gato Vadio: agora na Rua da Maternidade, esta livraria militante mantém um programa de atividades regular e apresenta uma oferta de qualidade, embora um pouco limitada. Mantém uma boa programação, mas uma oferta limitada.
    7. Livraria Utopia: Continua a ser uma boa opção para encontrar alguns títulos mais difíceis de encontrar ou por estarem fora de circulação ou a de distribuição difícil. É, sobretudo, uma livraria militante, com uma oferta de de autores do campo libertário. Fica na Rua da Regeneração.
    8. Essência do Livro:  Na Rua da Alegria, frente à escola Augusto Gil, a Essência do Livro – Livraria Urbana é uma boa surpresa. Espaço amplo recheado de um misto de fundos editoriais, novidades e alfarrabistas. É notória a oferta da editora portuense Book Cover.
    9. Livraria José Alves: situada no gaveto Rua de Avis/Rua da Fábrica, que apesar de generalista, apresenta um perfil mais técnico, herdado, talvez, do tempo em que os estudantes deambulam pela Baixa. 
    Socorro
    Essência do Livro

    III. Livrarias especializadas:

    1. Livrarias especializadas em livros estrangeiros: Rosebud (Inglês) em Cedofeita, Varenka (Russo e Inglês) na Rua do Almada; Ma Petit Libraire (Francês) no C. C. Campo Alegre com oferta de literatura infantil e a Bücherstube (Alemã) na Guerra Junqueiro. Nota-se que, ao contrário de Lisboa, não existe no Porto qualquer livraria dedicada ao mundo hispânico ou uma livraria francófona generalista e, sobretudo, não temos uma livraria como a excelente Livraria da Travessa, que existe em Lisboa, que nos facultaria acesso direto ao imenso universo editorial brasileiro..
    2. Livrarias infantis – A Livraria Papa-Livros (muito boa qualidade) na Miguel Bombarda, a Didatic by Edicare na Cedofeita, a Ave Azul no Parque Itália e a Salta Folhinhas em Costa Cabral fazem as despesas da casa. Faz falta um projeto como a Gigões & Anantes em Aveiro.
    3. Livrarias Religiosas: confesso que não frequento estes antros, mas a avaliar pela quantidade, trata-se de um sector imune às sucessivas crises do mercado livreiro. Senão vejamos: Livraria Franciscana e Edições Paulinas em Cedofeita, Livraria dos Salesianos na Rodrigues de Freitas, Livraria Paulus na Júlio Dinis e Casa da Bíblia em Costa Cabral
    4. Na Rua do Paraíso, encontramos a Livraria Aberta, a primeira livraria queer do Porto e uma seleção muito criteriosa de títulos que acaba por extravasar, aqui e acolá, o âmbito estrito do campo queer.
    5. Na rua dos Bragas temos a Trama, uma livraria improvável porque concentra a sua atenção no pensamento e filosofias contemporâneas. Apesar de pequenina, apresenta um poderoso leque de edições em várias línguas (português, espanhol, francês e inglês). É impossível sair dali de mãos a abanar. O Pablo tem sempre sugestões de leitura. 
    6. Tive algumas dúvidas se a Matéria Prima, encaixaria aqui ou não. Na verdade, trata-se mais de uma loja com livros, juntamente com uma parafernália de adereços vários, discos, revistas e zines. Acabo por considerá-la como livraria (apesar de não se considerarem como tal) especializada num sector muito específico das artes e cultura urbana.
    7. Livraria da Ordem dos Arquitectos na Álvares Cabral, como seria de esperar, é especializada em arquitectura. Apenas os arquitectos têm direito a desconto.
    8. Circo de Ideias é uma livraria especializada em arquitectura localizada no icónico Bairro da Bouça (Siza Vieira). Para além de livraria, é também editora, galeria e organiza eventos.
    9. E, por último, a jóia da coroa: a Poetria, a livraria especializada em poesia e teatro  fundada por Dina Ferreira, tendo há já algum tempo passado de mãos (para boas mãos) e, por vicissitudes dos tempos que correm nesta cidade, mudado de instalações para a Sá de Noronha.
    Livraria da Travessa (Lisboa)

    4. Considerações Semifinais:

    Lojas de livros à parte, focando apenas nas livrarias, o mercado livreiro apresenta características muito próprias, com pontos fortes e fracos que merecem atenção. A minha análise aqui baseia-se, sobretudo, numa perspetiva de consumidor, pelo que outros aspetos poderiam ser identificados através de uma avaliação mais detalhada ou com trabalho de campo.

    Pontos fortes:

    • Diversidade e qualidade da oferta: As livrarias apresentam um leque editorial muito vasto, que cobre desde grandes editoras até pequenas independentes, garantindo que o consumidor tem acesso a uma variedade impressionante de livros.
    • Integração com editoras: Muitas livrarias funcionam também como editoras, oferecendo uma produção própria que complementa o portfólio disponível e cria uma identidade única.
    • Dinamismo cultural: Além de vender livros, muitas livrarias apostam em programações paralelas como lançamentos, debates, leituras e outros eventos culturais que contribuem para a vitalidade da oferta cultural.
    • Curadoria especializada: O papel do livreiro como curador é uma mais-valia. Os seus conhecimentos permitem uma seleção criteriosa que orienta o leitor e valoriza a experiência de compra.
    • Presença de novos projetos: A emergência de novos projetos livreiros é um ponto positivo. Muitos desses novos estabelecimentos têm ainda um longo caminho a percorrer e um grande potencial de crescimento.

    Pontos fracos:

    • Imaturidade de alguns projetos: A juventude de certas livrarias pode representar uma fragilidade. Muitas ainda não atingiram uma fase de maturidade necessária para consolidarem o seu espaço no mercado.
    • Sustentabilidade económica limitada: Algumas livrarias parecem depender mais da paixão e militância dos livreiros do que de um plano de negócios sólido e bem estruturado, o que pode comprometer a sua longevidade.
    • Pequenas instalações e oferta limitada: Muitos espaços são fisicamente reduzidos, o que limita a quantidade de livros que podem expor e vender.
    • Dispersão geográfica: Há uma grande dispersão territorial, com muitas livrarias isoladas. Uma maior concentração, poderia criar sinergias mais fortes e aumentar o impacto.
    • Horários pouco consistentes: Em alguns casos, os horários de funcionamento são erráticos, dificultando o acesso regular dos consumidores.

    Apesar destas fragilidades, as livrarias de rua, incluindo as lojas de livros, têm um papel crucial na produção e difusão cultural. Mais do que isso, desempenham uma função social importante na construção de laços comunitários e na criação de vizinhança, ajudando a transformar as cidades em espaços mais habitáveis. A este respeito, recomendo a leitura da dissertação de Matilde Azevedo Costa, que analisa precisamente o impacto das livrarias independentes no Porto.

    Dada esta importância, deveria existir um apoio mais consistente do Ministério da Cultura, com programas especificamente dirigidos a este nicho cultural, como acontece em vários outros países. Actualmente, se não estou em erro, o único programa em vigor é o de apoio à transição digital das livrarias, inserido no PRR. No entanto, este tipo de ajuda, embora útil, não aborda diretamente os principais desafios que estas livrarias enfrentam. O apoio à sua sobrevivência e crescimento requereria uma estratégia mais abrangente e direcionada.

    5. O que fazer a partir daqui?

    Acredito que uma megastore como a FNAC na Baixa seria essencial, especialmente pela sua capacidade de atrair e fixar um público mais vasto. Contudo, não vejo a FNAC como uma concorrente direta das livrarias independentes, pois operam em segmentos distintos. Não é razoável imaginar que o público habitual deste tipo de lojas vá migrar para as livrarias independentes, já que estas últimas não oferecem o tipo de livros que esse público procura mas também porque estas se encontram dispersas pela cidade. Na verdade, defendo até que a presença da FNAC teria um efeito positivo no mercado livreiro em geral, ao facilitar o acesso à cultura impressa e democratizá-la. Esta é, afinal, a função das lojas-âncora no desenvolvimento de um ambiente comercial urbano mais diversificado e vibrante.

    Dito isto, há ainda muito a fazer para reforçar este ecossistema. Por exemplo, a Universidade do Porto poderia desempenhar um papel mais ativo na oferta cultural, disponibilizando aos seus alunos e à cidade uma plataforma sólida de divulgação de conhecimento académico e científico. A atual livraria da Reitoria é, no mínimo, decepcionante e não está à altura da instituição que pretende ser a melhor universidade de Portugal. A criação de uma ‘Livraria Académica Internacional’, que reunisse publicações da UP, de outras universidades nacionais e de instituições internacionais de prestígio, colocaria o Porto no centro do sector livreiro académico, dando à cidade uma nova dimensão cultural.

    Também gostaria de referir as livrarias dos nossos museus, que carecem de atenção. Quando visito museus no estrangeiro, perco frequentemente horas nas suas livrarias, que se afirmam como extensões naturais dos projetos expositivos. Entre nós, este conceito é praticamente inexistente. Encontramos, na melhor das hipóteses, alguns catálogos desatualizados e publicações poeirentas. Mesmo Serralves, que já teve uma livraria notável sob a gestão da saudosa Leitura, está a perder relevância, com o espaço a ser gradualmente tomado por souvenirs e merchandising.

    Mercado do Bolhão

    A nível de política local, reconheço que os instrumentos disponíveis são limitados, mas não são nulos. Quando soubemos do encerramento da Latina, foi particularmente desanimador ouvir o presidente da câmara dizer: “O presidente da câmara nada pode fazer, pode apenas chorar como os outros“. Esta afirmação é infeliz, pois, na sua posição, ele tem responsabilidades especiais, representando os cidadãos. No mínimo, Rui Moreira poderia ter escrito uma carta de protesto dirigida ao Grupo Infinitas Learning em nome da cidade e, idealmente, emitido um comunicado oficial de censura, dado o impacto significativo desta decisão no património imaterial e na paisagem cultural do Porto. Tendo em conta que Rui Moreira já foi bastante vocal em outros casos, como no das decisões da Metro, não vejo porque não agiria de forma semelhante neste caso. Além disso, poderia ter explorado a possibilidade de uma solução negociada, na qual a câmara criasse condições ou mediasse uma proposta para manter a Latina em funcionamento como livraria, por exemplo, através da aquisição do espaço seguida de um concurso de concessão.

    Já agora, os instrumentos legais que o presidente reclama para limitar a abertura de lojas de souvenirs, a serem outorgados, poderiam ser igualmente usados para assegurar a permanência de estabelecimentos com características estratégicas para a identidade e coesão social e cultural da cidade, como é o caso da Latina e de muitos outros em diversos sectores de atividade.

    Um exemplo positivo de política local no apoio ao setor livreiro é a Feira do Livro do Porto, que se revelou um sucesso. A relocalização da feira nos Jardins do Palácio de Cristal, o desfasamento em relação à Feira do Livro de Lisboa, o corte com a APEL, e o foco nos livreiros em detrimento das editoras, aliado a um programa cultural abrangente, foram estratégias acertadas. Para os livreiros independentes, este evento anual é uma oportunidade crucial tanto em termos de visibilidade como de receita. No entanto, o seu único defeito é ser um evento de periodicidade anual, deixando os restantes meses sem qualquer iniciativa semelhante.

    O desafio que lanço aqui é que a autarquia, que já demonstrou ter o know-how necessário, considere a organização de uma espécie de feira permanente do livro. O espaço ideal poderia ser o patamar superior do Mercado do Bolhão, que inexplicavelmente permanece devoluto. Este local tem todas as condições: centralidade, espaço, e interligação com outras atividades comerciais. Poderia ser criado um mercado semanal do livro, aos sábados, e, em sonhos mais ambiciosos, até um mercado com bancas permanentes. Isto permitiria rentabilizar o investimento no Bolhão, diversificar o público e oferecer aos livreiros uma oportunidade de gerar receitas complementares. Além disso, seria um importante passo na criação de um cluster cultural centrado no livro e qualificaria ainda mais a oferta turística da cidade. Seríamos o único mercado de frescos no mundo a partilhar o seu espaço com um mercado de livros. Os ingredientes estão todos lá; só falta ligá-los.

    [NOTA 1: Por razões de economia de espaço e por se tratar de um segmento que se rege por toda uma outra lógica, deixei o universo dos alfarrabistas para outra oportunidade. No entanto, estou perfeitamente consciente do importante papel que desenvolvem no mercado livreiro da cidade]

    [NOTA 2]: Post editado a 16.10.2024 com o acrescento da Livraria da Ordem dos dos Arquitectos e a Circo de Ideias]

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  • Projecto de residência universitária na Rua da Boa Hora

    Na sequência do post anterior sobre este tema, junto envio resposta da CMP relativa ao nosso pedido de intervenção de comissão arbitral que foi rejeitado liminarmente. Iremos recorrer e responder, uma vez que a qualidade de “interessado” é fácil de comprovar e que podemos apenas “debater” os regulamentos municipais aplicáveis. Eu em nome pessoal e outros vizinhos qualificamo-nos como “interessados” porque some proprietários de prédios em confrontação direta com a operação urbanística e seremos gravemente lesados pelo incumprimento das regras urbanísticas.

    Aproveito para informar de que a CMP já emitiu parecer favorável ao Licenciamento do Projeto da Residência Universitária e pavilhão desportivo da Boa Hora, outra vez, tal como aconteceu no PIP por despacho superior, desta vez da Diretora dos serviços de Gestão Urbanística, contra as informações técnicas de apreciação urbanística desfavoráveis, que elencam vários incumprimentos. Também contra o parecer da Direção Municipal de Património que classifica os azulejos das fachadas de “interesse patrimonial relevante” que devem ser mantidos “in situ”. Este Projeto prevê a demolição total dos edifícios existentes, incluindo as suas fachadas em azulejo. Junto envio estes documentos mencionados. A obra vai iniciar-se em breve.


    Post-scriptum: notícia no Porto Canal e intervenção na Assembleia Municipal

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