Se me permitem, começo por sugerir que assistam a este pequeno vídeo, no qual o Siza explica de uma muito clara a sua proposta:
A Avenida da Ponte, tal como hoje a encontramos, resulta da sobreposição de intervenções sobre o espaço urbano, a começar pelas demolições ocorridas durante as décadas de 30 e 40. Antes e depois desta catástrofe não natural, muitos planos foram elaborados, mas nenhum concretizado. A ferida continua a exibir-se no coração da cidade, denunciando a incapacidade de várias gerações em decidir — quer dizer, em decidir bem, porque, quando se decidiu demolir, até fomos bastante expeditos.
De todos estes projectos, só vale a pena falar do último, que já leva um quarto de século. Refiro-me ao anteprojeto de Siza Vieira, realizado por encomenda da Porto 2001 Capital Europeia da Cultura. Todos os planos que o antecederam foram soluções de pronta-a-vestir das várias tendências internacionais que se revelaram desajustadas. Só Siza esboçou um plano à medida do lugar. Este estudo tenta suturar a ferida, tomando como referência a torre da Casa dos 24 de Fernando Távora, intervenção que abre o precedente e o pretexto para a reconstituição, pelo menos em parte, da volumetria e implantação das edificações que lá existiam.
Siza ancora a sua proposta neste antecedente e apresenta uma solução que, em grande parte, replica, a poente, a implantação do edificado entretanto demolido e uma volumetria coerente com a dimensão, em altura, dos edifícios do quarteirão demolido. Com este gesto, liberta-se dos imperativos cenográficos, perfeitamente datados, que exigiam perspectivas livres para a Catedral, a qual, desta forma, volta a ter o aconchego do casario no seu lado sul, tal como, de resto, teve durante praticamente toda a sua história de séculos. Em contrapartida, do lado nascente, opta por deixar a descoberto a “pedreira” resultante do rasgo da abertura da avenida, dispensando-se de propor qualquer construção para ali.
Paralelamente, tendo em mente os pressupostos gerados pelo seu próprio anteprojecto, Siza irá projectar a estação de Metro de S. Bento como uma galeria subterrânea alongada por debaixo da avenida, com entradas a norte pela Praça Almeida Garrett e a sul, quase no topo da avenida. Hoje em dia, quando se sai pelo topo sul, fica-se com a sensação de que aquela boca não faz qualquer sentido, porque nos conduz ao meio do nada, nem sequer suficientemente perto da Catedral. É preciso imaginar, à direita, um conjunto de sete edifícios fantasma que nunca foram construídos, com um parque de estacionamento subterrâneo que teve a mesma sorte. Na verdade, estamos perante um estaleiro de obra cristalizado.
Ao longo do tempo, foram-se fazendo algumas intervenções pontuais para dar resposta a necessidades económicas e urbanísticas de circunstância, como o Mercado de São Sebastião, projectado pelo arq. António Moura, cuja demolição já foi anunciada, e o rearranjo dos passeios e o ajardinamento precário aquando das obras do metro. Mesmo assim, nunca deixou de ter aquele ar de inacabado e cheio de pontas soltas. Trata-se de uma fenda no espaço urbano, mas também no tempo, porque amplifica o distanciamento entre momentos distintos da história da cidade e ainda uma fenda entre formas distintas de conceber a cidade.
Recentemente, o vereador do Urbanismo, Pedro Baganha, sugeriu que se reconsidere o projeto de Siza. Abandonando a ideia do Museu da Cidade, que seria um equipamento âncora na versão original, e focando-se na função habitacional, parecem estar reunidas as condições para corrigir o erro. De facto, estamos num momento único de fluxo de investimento privado, e a câmara tem a capacidade de planear e direcionar o investimento para a concretização deste projeto, que será o último grande redesenho do coração da cidade. Com ele, encerraremos dois ciclos: o ciclo iniciado com as demolições e o ciclo dos grandes investimentos privados no centro histórico. Não vejo outra oportunidade para construirmos 300 casas no centro histórico numa só investida. Portanto, se por um lado temos todos os motivos para estarmos entusiasmados, por outro, é importante manter o espírito crítico, à boa maneira portuense, até porque, como já foi dito, não há “vacas sagradas”. Há muitos pontos que merecem reflexão e discussão. Apresento aqui cinco propostas para debate:
- Loteamento Exclusivamente Habitacional: Além de algum comércio de apoio, o loteamento deve ser exclusivamente habitacional, excluindo a possibilidade de construir mais hotéis. Mesmo os mais entusiastas concordarão que não falta oferta nesta área.
- Habitação Pública: Pelo menos 25% das habitações devem ser destinadas a habitação pública com arrendamento controlado, incluindo habitação social. Não podemos permitir que, só porque é investimento privado, se crie um bairro de luxo e segundas habitações. Se vamos ceder terreno público, a contrapartida deve ser a oferta de habitação pública. É uma oportunidade para demonstrar que é possível conciliar justiça social e interesse público com investimento privado. Idealmente, seria interessante trazer de volta muitos dos residentes da Sé e do Barredo que foram encaminhados para bairros periféricos.
- Sustentabilidade e Desempenho Energético: O caderno de encargos deve ser exigente em termos de sustentabilidade e desempenho energético deste bairro. O impacto simbólico e efetivo da construção de 300 fogos no epicentro da cidade não deve ser negligenciado.
- Estacionamento Subterrâneo: No projeto de 2000, Siza propõe a criação de estacionamento subterrâneo para cerca de 370 carros (sugiro que consultem este trabalho de Rita Tavares Besteiro, nomeadamente na página 40, onde poderão encontrar o detalhe do estacionamento proposto). É crucial garantir que estes lugares sejam exclusivos para moradores e que não se permita a exploração comercial, para não aumentar o tráfego no centro da cidade. Pode ser também a oportunidade de criar estacionamento para os moradores da Sé e do Barredo, que atualmente improvisam estacionando nas ruelas adjacentes. Libertar a zona adjacente à catedral de automóveis seria muito importante.
- Plano de Urbanização para o Lado Nascente: A proposta de 2000 de não edificar no lado nascente da Avenida é discutível. Este espaço é desconfortável e inóspito, e deixar a pedreira descoberta não traz qualquer benefício para a qualidade do espaço urbano. Além disso, a imaginação dos decisores autárquicos pode levar a colonizar o espaço com barraquinhas de bugigangas para turistas, tal como já acontece regulamente. Portanto, este lado da avenida também deve ser sujeito a um plano de urbanização, coordenado com o restante plano. Adjudicar a elaboração deste plano a Souto Moura poderia ser uma boa ideia, criando uma avenida de Pritzkers de ambos os lados. Seria uma homenagem merecida à escola do Porto e um trunfo na luta pela visibilidade internacional, um campeonato em que a câmara atual parece empenhada. Para mim, tudo bem, desde que ¼ dos fogos esteja reservado para habitação pública.
Chegámos a um ponto em que a indecisão é imperdoável, pois todas as condições parecem reunidas para resolver este problema. Se tudo falhar, se Siza recusar o convite, será melhor promover um concurso internacional. Já que as premissas estão definidas, é melhor avançar quanto antes. Sou a favor de concursos, mas neste caso específico, a adjudicação por convite faz sentido.
Devo dizer que minhas expectativas são moderadas. Os sinais iniciais não permitem grande otimismo, a começar pelo facto do vereador ter levantado a questão numa sessão fechada e paga na torre de marfim de Serralves. Se alguém quer debater seriamente esta hipótese, deve fazê-lo em praça pública, não num espetáculo com bilheteira. E deve ser no próprio território em discussão. Há muitos auditórios e espaços disponíveis nas imediações da Avenida da Ponte onde esta intenção poderia ser discutida abertamente. Suspeito que os envolvidos não perceberam o quão inadequado era o contexto para lançar esta proposta. Se chegarmos ao ponto de os cidadãos terem de pagar bilhete para ouvir o vereador anunciar uma medida, então é melhor mudar a Câmara para o Rivoli e começar a cobrar bilhete pelo espetáculo. Além disso, não parece útil que, na semana anterior a este anúncio reservado a portadores de bilhete, o presidente da Câmara tenha criticado o arquiteto de forma ofensiva e inadequada em relação às paragens do metrobus. O pontapé de saída foi fraco. Vamos ver se, entretanto, se organizam e encontram uma fórmula de comunicar adequadamente com a cidade e com a seriedade que o assunto merece.
Nota: Sobre o Mercado de São Sebastião Fico (mal)impressionado com o desrespeito pelo trabalho do arq. António Moura. Ao serviço do CRUARB, foi responsável por cerca de 80 projetos de reabilitação e arranjos urbanísticos no centro histórico do Porto, alguns premiados. Devemos-lhe intervenções tais como o Elevador da Lada, o Bairro da Lada, a Praça do Cubo, entre outras. O cuidado com o pormenor e respeito pelo património são – ou deviam ser – uma referência. No caso do Mercado de São Sebastião, o equipamento esgotou a sua utilidade, mas é preciso contextualizar a intervenção e perceber que foi um esforço importante para regularizar o mercado informal que existia ali, num tempo em que não havia recursos privados interessados na zona e os recursos públicos eram limitados. Além disso, creio que foi uma das primeiras coberturas verdes utilizadas em soluções arquitetónicas em Portugal. A demolição do mercado pode ser aceitável, mas é necessário reconhecer a qualidade e dedicação do trabalho realizado.