Com a falta gritante de habitação que atravessamos, e com a chegada do programa do PRR, instalou-se a discussão sobre como organizar, financiar e construir casas da forma mais rápida e eficiente. Incluído neste comportamento mexe-se e altera-se na legislação para facilitar licenciamentos e autorizar construção habitacional em qualquer lado, sem restrições. No entanto, não se entende que o foco deveria estar muito mais nas pessoas e nos programas habitacionais, do que nas meras quantidades e métodos de construção. Não que estas questões sejam irrelevantes, mas precisamente porque são elas que, no futuro, reflectirão o acerto — ou o erro — nas opções que agora tomamos. Percebo que este tema pareça pouco dizer à discussão, especialmente numa época em que as gerações estão cada vez mais distantes dos valores conceptuais e cada vez mais voltadas para os valores pragmáticos.
Compreendo a nossa “Esquerda” política, que ainda hoje se refugia nos velhos argumentos das “lutas de classes” e defende fervorosamente os bairros sociais, como se fossem o bastião da justiça urbana. Não percebem, porém, que muitos desses bairros são autênticas nódoas na paisagem urbana, talvez um dos maiores erros do urbanismo moderno. Bairros que se caracterizam por espaços monofuncionais, de qualidade ambiental medíocre, construídos à pressa e com o mínimo de qualidade. Obrigam em gastar dinheiro continuamente neles, sempre para as eternas “obras de recuperação”, sem qualquer verdadeira visão de transformação.
O crescimento urbano passado levou à construção das “ilhas” e, mais tarde, dos bairros camarários — sempre longe, sempre isolados, uma tentativa deliberada de esconder a “pobreza” nos confins das cidades. Hoje, as cidades estão saturadas de bairros que mais parecem vazios da malha urbana, espaços que se desligam do resto, onde os habitantes se habituaram a uma espécie de auto-exclusão, quase uma vergonha de lá viver. Importa, contudo, recordar que nem todos os bairros sociais são iguais, nem os seus habitantes formam uma massa homogénea. Seria mais do que justo, e mais do que necessário, promover uma verdadeira integração dos cidadãos em todos os espaços da cidade.
Se pudesse propor uma solução para os bairros sociais, seria a de tentar erradicá-los tal como estão, transformando-os em zonas de uso misto, integrando-os em núcleos urbanos variados e distribuindo parte da população para outras áreas — e não apenas para a periferia. Qualquer espaço é válido, desde que passe pela diversidade de classes e funções urbanas. Evidentemente, estas soluções não devem ser impostas com tirania, nem envernizadas com paternalismo. A tirania de mandar e desmandar, sem ouvir as populações e sem construir um programa de trabalho conjunto, é o erro clássico que arrisca repetir-se. Quanto ao paternalismo, bem, é aquele que assume que os “mais desfavorecidos” não têm condições ou capacidade de escolha – e que, por isso, alguém tem sempre de decidir por eles.
A responsabilidade está, em última análise, nas Câmaras e no Estado, que se por um lado devem promover a construção de habitação, por outro devem facilitar aos privados a mesma possibilidade. Que devem permitir que o mercado de arrendamento seja uma realidade, dando lugar ao investimento e à poupança, no lugar de ser a obra social que o Estado obriga no congelamento das rendas. E deveria ainda o Estado tomar posse dos inúmeros edifícios devolutos, não com autoritarismo, mas em parceria com os proprietários que não podem e não conseguem intervir, transformando a sua propriedade num qualquer direito patrimonial. Esses prédios devolutos, muitos deles, seriam oportunidades ideais para reabilitar e recriar quarteirões, transformando por fim a cidade. Devíamos todos afinar a discussão e acertar as vias mais correctas para promover a Habitação.
Há uma urgência habitacional, sim, mas é a de resolver este paradoxo de isolamento e desigualdade e, com ele, transformar de facto a vida das pessoas.