A Avenida da Ponte está no centro de um debate: habitação pública ou espaço verde? Sugere-se uma solução inovadora – o modelo Community Land Trust – que promete combater a especulação e garantir acessibilidade. Com Lisboa a liderar nas políticas habitacionais, fica a pergunta: como o Porto responderá?
1. Voltemos ao assunto da Avenida da Ponte. O debate que se desenvolveu aqui foi bastante interessante pela diversidade de pontos de vista apresentados: eu defendi a adaptação do projeto de Siza Vieira, sem museu, com habitação pública e com urbanização do lado nascente, ou seja, uma solução que, de certa forma, procura repor a memória da malha urbana que ali existia. O Alexandre Burmester pegou no mote, mas deu um importante contributo ao sugerir que a avenida não deve ser considerada isoladamente, devendo ser equacionada em conjunto com o Parque das Camélias e a área adjacente ao Viaduto da Duque de Loulé, duas áreas urbanas cinzentas. Além disso, reforçou insistentemente a necessidade de debate público sobre o tema. O TAF, concordando com a generalidade das propostas apresentadas, acrescentou que não é sequer obrigatório que a avenida seja mantida com a atual configuração, podendo ser exploradas outras soluções alternativas de design urbano e, aspeto a reter, sugeriu que esta operação poderia ser alavancada sob a forma de cooperativa. A Raquel assumiu uma posição contra a edificação no local, defendendo que esta área deveria ser reservada para um espaço verde; esta opinião foi secundada pelo José Pedro Tenreiro, que recuperou, para o efeito, o projeto do Távora. Ninguém se pronunciou no sentido do extremo oposto, ou seja, a favor de construção massiva com implementação de serviços de apoio, hotéis e lojas âncora (supermercados e outros). Mas não tenhamos grandes ilusões, porque não faltarão por aí quem defenda soluções deste género, e estes não deixarão de ter uma voz ativa e, talvez, decisiva, quando o projeto avançar.
2. Entretanto, fui pensando no assunto e devo dizer que a minha posição atual já não é exatamente a mesma, pois ficou claro para mim que a proposta do Siza não é reciclável. No máximo, ajudou a estabelecer, em parte, as condições gerais para um eventual projeto de urbanização da avenida, isto é, repor a escala da edificação que existia no local antes das grandes demolições. A partir daqui, parece-me fazer todo o sentido promover um novo debate que conduza à realização de um concurso para apresentação de propostas que respondam da melhor maneira à emergência habitacional e ambiental. Também me parece claro que este processo não arrancará neste mandato. As declarações do vereador do urbanismo não passaram de conversa de circunstância, não havendo qualquer intenção séria em avançar com o descongelamento do projeto do Siza, até porque, se assim fosse, seria o próprio presidente da Câmara a anunciá-lo. Em todo o caso, mais tarde ou mais cedo, a cidade terá de se debruçar sobre o assunto e, agora que as eleições autárquicas estão aí à porta, este é o momento certo para chamar a comunidade e os partidos políticos ao debate.
3. Lisboa anunciou a cedência de terrenos municipais para a construção de 1.500 fogos através do modelo cooperativo. Lisboa está mais adiantada do que o Porto neste tipo de iniciativas, mas Lisboa já aprovou a Carta Municipal de Habitação e tem em funcionamento o seu Conselho Municipal de Habitação. O Porto, nem por isso. A Carta deveria ter sido apresentada em junho, mas falharam a data. O vereador prometeu que no início de 2025 seria aprovada (o que quer dizer que o período de discussão pública irá coincidir, comodamente, com as festividades natalícias, querem apostar?). O Conselho Municipal de Habitação, apesar de recomendado no relatório da Estratégia Local de Habitação, nunca foi implementado e, atrevo-me a dizer, jamais o será enquanto este executivo estiver no poder. A cidade do Porto, aliás, vive a curiosa circunstância de ter aprovado um Plano Estratégico para o Turismo e de ter em funcionamento um Conselho Municipal do Turismo, mas não o equivalente para a habitação. Prioridades.
4. O conjunto Avenida da Ponte / Viaduto Duque de Loulé / Parque das Camélias dispõe de área municipal e é constituído por solo urbanizável de domínio público municipal. Assim, qualquer projeto que aí se desenvolva necessariamente terá de contemplar habitação pública e serviços públicos. A pista lançada pelo TAF, apontando para uma solução baseada no modelo cooperativo, indica o caminho. Subscrevo, mas com uma pequena nuance. Atendendo à especificidade do local e do próprio mercado, a melhor solução, em termos de operacionalização, seria a criação de uma Community Land Trust (CLT), ou, em português, algo como Fundo Comunitário de Terras. Este modelo, amplamente testado nos E.U.A. e na Europa (ver o caso do Community Land Trust Bruxelles, premiado em 2021 pelo World Habitat Awards), consiste numa organização sem fins lucrativos que adquire e mantém a posse da terra (por 90 anos, por exemplo), com o objetivo de garantir o uso acessível e sustentável a longo prazo. O terreno é propriedade do CLT, enquanto as habitações (casas, apartamentos) são vendidas ou arrendadas a preços acessíveis aos residentes. Os proprietários das habitações têm um direito de uso, mas as regras do CLT ajudam a limitar a especulação imobiliária, garantindo que os imóveis continuem acessíveis para futuras gerações. Assim, o CLT separa a propriedade da terra da propriedade da habitação, de forma a proteger a comunidade contra a gentrificação e a aumentar a estabilidade de preços. O edificado pode ser propriedade privada ou comunitária conforme se trate de uma operação com parceiros particulares e/ou cooperativos e pode ser transacionado, mas dentro de limites pré-estabelecidos. A vantagem desta solução é que permite selecionar a opção mais adequada para cada situação; por exemplo, um CLT pode optar por um parceiro cooperativo para um lote e por um parceiro particular para outro (a dimensão reduzida do lote, por exemplo, pode requerer esta solução). O CLT permite conciliar ambos os tipos de abordagem, assegurando que o solo estará sempre ao abrigo da especulação futura e, aspeto muito importante, que o direito sobre o edificado possa ser transmitido de geração em geração, promovendo uma estabilidade geracional e comunitária. A flexibilidade do sistema permite ainda incorporar oferta de arrendamento controlado e terrenos ou imóveis já edificados com origem diversa, resultantes de doações, concessões ou aquisições a privados ou ao setor público. Acho particularmente interessante a possibilidade de conciliar a iniciativa privada com o interesse comum. Num contexto cultural centrado no indivíduo e na família, em que há uma maior inclinação para se ser dono da sua própria casa em vez de arrendá-la e em que subsiste alguma resistência a modelos de partilha de responsabilidades, típicos do modelo cooperativo, o CLT oferece a possibilidade de canalizar o interesse particular para o bem comum. Isto é, um particular pode construir dentro de uma CLT, cumprindo as regras pré-estabelecidas e na condição de, em caso de venda, ficar condicionado ao tecto máximo programado. Além disso, o CLT tipicamente adota um modelo de governança que promove a participação tripartida entre os residentes/proprietários, a câmara municipal e entidades externas relevantes, incluindo a vizinhança. Ou seja, o modelo baseia-se num conceito de comunidade alargada. Neste aspeto, vai mais longe do que o modelo estritamente cooperativo, que é confinado aos sócios da cooperativa.
5. Talvez ainda tenhamos um longo caminho até começarmos a ponderar a aplicação deste modelo, que é, afinal, tão culturalmente disruptivo ao separar a posse da terra da propriedade do edificado. Há várias razões que explicam o conservadorismo atual. Talvez a mais forte seja precisamente a ideia de o terreno não ser transacionável, de estar excluído do negócio imobiliário, que é, atualmente, um dos grandes motores da economia. E, no entanto, este não é um modelo revolucionário nem sequer pioneiro. Já está mais do que testado. Lisboa, mesmo sem adotar este modelo, propõe transferir diretamente para as cooperativas terrenos para a construção de habitação a preços controlados. Vai ainda mais longe, acrescentando a todos os benefícios fiscais e isenções a oferta dos projetos de arquitetura e especialidades para suavizar os custos da operação. O Porto, nem por isso. Este texto é meramente prospetivo. Eu próprio tenho muitas dúvidas sobre a operacionalização de uma CLT e da sua compatibilização com o atual enquadramento jurídico. Convido todos os que tiverem contributos a fazer que não se acanhem e deixem aqui as suas opiniões. Enquanto os partidos se concentram na difícil escolha dos nomes que apresentarão como candidatos, façamos nós a discussão da cidade.
David Afonso [david@norte.pt]