Bolhão: um corpo com dois mercados

[Nota Prévia: Ao ler este post do Tiago, lembrei-me que tinha por aqui algumas anotações, ainda que incompletas, sobre o Mercado do Bolhão. O que é um mercado e a relação com a cidade e a coexistência de duas culturas distintas dentro do Bolhão são alguns dos pontos aqui abordados].

Mercado do Bolhão 2024 [Foto: David Afonso]

1. Penso que terá sido Le Goff a afirmar qualquer coisa como isto: a melhor maneira de se conhecer uma cidade é visitar o mercado local. Os mercados dão-nos uma visão dos hábitos de consumo dominantes numa determinada geografia. Não são locais de comércio generalista, como os modernos hipermercados, mas de comércio de precisão: vende-se o que se produz localmente em função das necessidades típicas dos fregueses locais. Idealmente reflectem, não só a apetência do consumo local por determinados produtos (peixe fresco, bacalhau, carne de porco, couves, etc…), apetência essa que varia muito de geografia para geografia por estarem enraizadas nos hábitos, costumes e tradições específicas de cada terra, mas também a economia e produção do seu hinterland, ou seja, os produtos disponíveis são produzidos localmente ou num raio de proximidade que permita o abastecimento diário. Por essa razão, a oferta tende a ser bastante conservadora, refletindo no fundo, os gostos estabilizados ao longo de sucessivas gerações. Procuramos aquilo a que nos habituámos a comer. Pela mesma razão os agentes tendem a uma grande estabilidade. Não são raras histórias de vendedores que iniciam atividade ainda crianças e que a abandonam apenas no final da vida e de postos de venda que são passados de pais para filhos. Do mesmo modo, o grau de fidelização dos clientes é bastante elevado. Apesar de recorrerem em paralelo às grandes superfícies para a aquisição dos bens correntes, não quebram o hábito de ir ao mercado ao sábado, por exemplo, porque a verdade é que acabam por se estabelecerem relações de cumplicidade e confiança, quando não mesmo de amizade, entre comerciantes e fregueses. Portanto, quando observamos um mercado importa não apenas olhar para os produtos que estão à venda mas também para a interação entre os vários agentes porque daí poderemos extrair pistas importantes sobre alguns aspectos da sociedade de cada cidade (Nota: numa deslocação recente a Atenas, constatei que no mercado local praticamente todos os comerciantes de peixe eram, ao contrário do que eu estava habituado a ver, homens. Aliás, todo o ambiente do Varvakeios é predominantemente masculino, com a sua epítome na secção dos talhos onde abundam os bigodes e as pontas de cigarro no canto da boca. O ambiente é muito diferente da realidade portuguesa, sem pregões e com um maior distanciamento entre o vendedor e o cliente). 

2. O Bolhão é um pouco isto tudo. Há produtos que encontramos no mercado mas não no supermercado e as relações entre clientes e vendedores são, digamos, muito intensas, com os vendedores num esforço contínuo de angariar clientela seja através de pregões, seja pela interpelação direta, seja pela negociação. Há uma envolvência sensorial de sons, cheiros e cores e um tipo de interação social que nem encontramos numa grande superfície e nem sequer é reproduzível, imitável. Por isso, quando voltei ao Bolhão depois da sua reabertura, ía um pouco apreensivo e, há que reconhecer, céptico. O projeto de reabilitação parece ter cumprido o objectivo. Podendo haver um outro detalhe a limar (nomeadamente nas bancadas), o projecto é muito mais capaz e adequado que os projectos anteriores. Apesar do respeito pela solução apresentada nos anos 90 pelo arquitecto Joaquim Massena, esta era, já à época, datada e  não respondia às necessidades e à evolução da percepção do que um mercado de frescos deveria ser. No final da primeira década de 2000, a solução apresentada pela Trancrone, a concretizar-se, seria uma autêntica aberração e implicaria a privatização do mercado, transformando-o numa espécie de shopping center. Em termos comparativos, o projecto do Nuno Valentim é muito mais evoluído até porque, no geral, incorpora de forma mais equilibrada os valores da preservação do património cultural edificado quando comparado com soluções anteriores. Fica, no entanto, a ferida da demolição dos pavilhões originais. Criticável também será a opção do município em adjudicar o projecto de reabilitação sem concurso púbico, recorrendo para um efeito a um estratagema, no mínimo, questionável. Agora, perante a obra concluída e aberta ao público, estas questões parece terem ficado lá para trás, embora haja outras de outra natureza.

Projecto dos Pavilhões do Mercado do Bolhão [Fonte: AHMP]

3. O mercado reflete, portanto, a cidade. Ora, como bem se sabe, a cidade do Porto sofreu importantes alterações nos últimos anos, sendo a mais dramática de todas a explosão do turismo. O turismo tem uma coisa curiosa: os turistas têm um contacto muito superficial com a cidade, no fundo, nos 2, 3 ou 4 dias que por cá passam, só lhe tocam muito ao de leve, antes de regressarem a casa e voltarem a sair para uma outra expedição a outra cidade qualquer. Caçam experiências, dizem. Percorrem, dentro da cidade, os circuitos mais ou menos instituídos, alimentam-se nos restaurantes especialmente montados para eles e pernoitam em alojamentos concebidos como parte da experiência imersiva. Poucos se aventuram para fora deste ecossistema artificialmente criado,  raros são os que prolongam a estadia para além dos três dias, quase nenhum consome os alimentos dos nativos ou comem versões concebidas para os foodies globais alimentarem o instagram. Mas, não obstante tocarem apenas na epiderme da cidade, deixam cicatrizes profundas nesta. Afectam as condições de alojamento dos residentes, o preço das casas, dos restaurantes e esplanadas sobem para irem ao encontro da maior disponibilidade da bolsa dos estrangeiros, condicionam o ritmo normal da cidade e até, mesmo sem querer, colocam em causa a identidade estabilizada da cidade. 

Vista aérea do Mercado do Bolhão, 1948 [Fonte: AHMP]

Não há turismo neutro, tal como não existe qualquer actividade económica neutra, que não molde o ambiente urbano de forma directa ou indirecta. Pense-se, por exemplo, no Porto da revolução industrial e de que como no século XIX e ainda século XX, a industrialização moldou o espaço urbano com a instalação das fábricas, com a importação de mão de obra do interior e a concentrou em bairros operários e em ilhas. Estamos a falar de mutações que transvasaram, como não poderia deixar de ser, a dimensão económica e vieram a introduzir importantes mutações no ADN cultural e identitário. Mesmo festas ancestrais como o S. João incorporaram as tradições desta horda de operários, residentes recém chegados e com hábitos em grande parte rurais, moldando a geografia e modos da celebração que se mantiveram mais ou menos estáveis até à atualidade. Quando se diz “Porto”, diz-se cidade burguesa e cidade do trabalho que teve o seu culminar com a industrialização que entrou pelo século XX adentro. Aliás, o próprio Mercado do Bolhão é uma materialização de um projeto de cidade profundamente devedor desta identidade urbana meio burguesa, meio industrial e meio (desculpem-me lá estas contas tão pouco ortodoxas) rural. Assim, também a ligeireza com que cada turista toca o chão do Porto (e de qualquer outra cidade), não deixará de repercutir ondas de choque que moldará o íntimo da identidade portuense. Não sabemos o que iremos ser no futuro, mas sabemos que não voltaremos a ser os mesmos, tal como não voltámos a ser os mesmos depois da industrialização. O Mercado do Bolhão reflete esta nova realidade económica e social, pelo que é sem escândalo que vemos ao lado das batatas e do peixe, as conservas de design e as lojas de vinho dirigidas aos consumidores que estão de passagem.

As bancas gourmet, aos poucos, tomam o lugar das bancas de peixe.

4. O mercado reflete a mutação da economia e a recomposição social da cidade. Os mais de 11 milhões de visitas registadas desde da reabertura serão, em grande parte, de turistas. Observar, participar, neste fluxo é mergulhar na corrente da cidade. É a cidade que se materializa ali à nossa frente naquele espaço confinado. O Bolhão é a sinédoque da cidade. E tal como nessa imensa generalização que chamamos “Porto” ou de uma forma mais vasta «cidade» ou de uma forma mais codificada “Invicta”, pressentimos os movimentos de acomodação à mudança mas temos alguma dificuldade em identificá-los e circunscrevê-los de uma forma precisa porque estamos a falar de fenómenos que têm o seu próprio ritmo e que se vão concretizando de forma discreta pelo espaço urbano, no Bolhão temos o Porto encapsulado, uma cidade em escala de laboratório. O equilíbrio entre dois mercados que partilham o mesmo espaço, o Bolhão Tradicional com a velha linhagem de comerciantes e o Bolhão hipsterizado com uma nova e variada estirpe de comerciantes representará, à sua própria escala, o jogo de forças que ocorre lá fora. É por isso importante ir seguindo o desenvolvimento dos acontecimentos, de como as partes aprenderão a conviver uma com a outra porque daí podemos extrair lições importantes sobre o nosso futuro comum. Eventualmente, poder-se-ia ter seguido um outro caminho. Teoricamente falando, teríamos tantas soluções para o Bolhão quantas aquelas que a nossa imaginação comportasse e a nossa bolsa permitisse. Uma vez definida esta solução híbrida, o sucesso ou insucesso do Bolhão passará sempre pelo equilíbrio entre a inovação e a tradição, entre os vendedores que sobreviveram e os novos que chegaram com produtos e posturas diferentes, entre os clientes locais e os turistas. Esta interdependência é um jogo difícil e precário. Os novos atores têm um carácter empresarial, logo expansionista por natureza e a tendência será começarem a aparecer cada vez mais bancas com produtos alinhados pelo que se julga ser o gosto do turista. Já os comerciantes tradicionais são conservadores por natureza, mantendo a escala do seu comércio e pouco disponíveis para mudarem. Para além disso, a sucessão familiar – ou outra modalidade de transmissão – da atividade é mais frágil porque não se trata apenas de um negócio mas de um modo de vida. O que é certo, é que a cultura do lugar mudou. Não diria que o Mercado do Bolhão vendeu a alma ou que perdeu a alma. Diria antes que o corpo do mercado alberga duas almas distintas. Pelo menos, por enquanto.

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