Esta é a Idade do Turismo, a era em que o Turismo se tornou na mais importante das indústrias e, desta vez, não somos periféricos. Esta revolução não chega até nós tardiamente e em segunda mão No que diz respeito a este assunto, estamos mesmo no olho do furacão. Haverá razões substantivas para tal: esta é também a Idade da Mobilidade, a Idade Digital e nunca, apesar de tudo, houve antes tanta gente com tempo e dinheiro suficiente disponível para gastá-lo no pequeno luxo da viagem de lazer. Também lá haverá outras razões, estas mais difíceis de descortinar e recheadas de paradoxos. A começar pelo facto de nós, aqueles que resmungamos todo o santo dia contra os turistas, viramos a casaca, pegamos na mala e fazemo-nos de nós próprios turistas do dia para noite. Tal como o gato de Schrödinger que está morto e vivo ao mesmo tempo, todos nós somos ao mesmo tempo turistas e locals. Sim, isto tem qualquer coisa de esquizofrénico, mas não acaba por aqui. Mesmo quando dentro da farda de turista, somos acossados por uma contínua espécie de dissonância cognitiva: todo o turista que é turista detesta turistas e procura convencer-se de que ele próprio não é um turista. Bem, pelo menos um turista como os outros. Talvez devamos reconhecer que a omnipotência da indústria turística levou à extinção do viajante. Não há mais terra incognita. É impossível tirar uma foto de um lugar sem apanhar outros turistas, quebrando assim o encantamento. E é o encantamento do único, do intocado, do autêntico, enfim de replicar a experiência de comer, passear, viver como os tais locals. Talvez por isso mesmo, a Time Out insista em elaborar listas dos lugares secretos – sem turistas, entenda-se – para uma experiência gastronómica, para ver o pôr do sol, para… para tudo o que possam imaginar no vosso postal de férias. Como é óbvio, essas listas são um logro. E mesmo que não o fossem, assim que expostos, os segredos deixam de ser segredos. O que nos conduz à perplexidade quântica que resulta da constatação de que a simples presença do turista altera a própria realidade. O que se vê, nem sequer é a cidade aos olhos de um turista, mas a cidade que assume a alteridade de cidade turística, assim uma espécie de cidade para inglês ver. Fabricamos autenticidade da melhor qualidade. Somos todos turistas uns dos outros. Isto é muito complicado e desconfio que permanecerá sempre em aberto, o mistério que estará por detrás deste ímpeto que leva milhões a todos os anos a deslocarem-se para um outro ponto do planeta, por uns dias ou semanas, sem qualquer finalidade evidente. Não é fácil perceber e muito menos explicar o que procuramos quando nos pomos dentro do fato de turista.
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A globalização do turismo transformou não apenas a própria atividade do turismo, mas também a economia, as cidades, as sociedades, as pessoas. Quem nunca se sentiu figurante de encenação na sua própria cidade? Muitas vezes, dizemos que as nossas cidades transformaram-se em disneylândias. Percebe-se a ideia, mas não. A imagem não é perfeita. Os parques da diversão da Disney são concebidos de raíz com o propósito de venderem a ilusão do universo de fantasia. Os castelos não têm a pretensão de serem reais e, felizmente, também não as princesas. Há um acordo tácito entre as partes do qual excluímos, também tacitamente, as crianças: todos sabemos que tudo é falso, mas por umas horas fazemos de conta que não. Cumprimentamos o Mickey, tiramos fotografias com o Pato Donald, esperamos horas para só para cumprimentar Cinderela (eu sei, estive lá), assustamo-nos com o Capitão Gancho, passeamos nas ruas das cidades imaginárias como se fossem reais. Só também sabemos que não vive lá ninguém. Tal como o figurante despe o fato do Mickey ao final do dia, também a cidade vai dormir (bem cedo) e fecha as portas até ao dia seguinte. Os turistas são encaminhados para os hotéis estrategicamente montados nas redondezas que, mesmo que procurem prolongar a fantasia perseguindo os temas, já não enganam ninguém. É a vida real (pelo menos tão real quanto pode ser a vida num hotel). Ora, as nossas cidades não funcionam desta maneira. Não dá para fechar portas e mandar os turistas embora. Na verdade, o turismo urbano é omnívoro. Devora todas as horas, da manhã à noite. A experiência é total. E da mesma maneira que a cidade não pode fechar portas porque não é um parque temático, as pessoas, especialmente aquelas que trabalham na primeira linha nos hotéis, restaurantes, bares, comércio, guias, etc, não podem despir o fato e voltarem a serem elas mesmas. O ator que se veste de Mickey Mouse, sabe sempre que não é o Mickey Mouse. Em contrapartida, uma pessoa que se finge a ela própria numa representação para o turista, o que é ela ao fim do dia? Não pode fumar um cigarro a olhar para a máscara da Minnie Mouse com um sorriso irónico. Não há ironia possível quando somos figurantes na nossa própria cidade, o fato cola-se à pele.
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[PS: Para considerações mais desenvolvidas sobre o tema, consultar o meu post «Porto: Cidade de Turismo»]