Fazer compras no Mercado do Bolhão tornou-se, em larga medida, numa experiência estranha. Em primeiro lugar, porque uma parte cada vez maior dos produtos não se destina aos clientes locais. A frutaria é uma parafernália de frutas exóticas, tropicais, subtropicais, pós-tropicais, devidamente preparadas e acondicionadas para conforto imediato do turista. As peixeiras do Bolhão, outrora, a espinha dorsal da identidade do Mercado, competem pelo mesmo espaço que as sofisticadas tapas de ouriço do mar, lombinhos de sardinha marinados em citrinos, espetadinhas de gambas e vieiras na concha. Tudo bonito e colorido, servido para consumo imediato e no local. Também não me vejo a ir ao mercado comprar daquelas latas de sardinha coloridas estilo recuerdo de Portugal. Em segundo lugar, porque não é prático – e não é digno – estar a comprar hortaliças ou broa de Valongo no meio de turistas selfielizados, de copo de espumante na mão ou arrojados pelo chão do mercado a terem uma experiência gastronómica em público, sem qualquer pudor. Para terem uma ideia da estranheza da situação, imagine-se a ser surpreendido por um estranho a tirar-lhe fotografias enquanto escolhe uma couve-galega na secção de frescos do hipermercado ou na secção do talho do mesmo hipermercado, andarem por ali uns turistas de copo de vinho na mão a apontar para as carnes ou na secção de enlatados, uma família de turistas a improvisar um piquenique no chão. Seria de loucos não seria? Pois, é isso agora o Mercado do Bolhão.
Quando se falava na necessidade urgente de se salvar o Bolhão, discutia-se com gravidade como poderia este, enquanto mercado de frescos, competir com as grandes superfícies. Percebemos agora que se tratava de um equívoco. O Bolhão, afinal, corre na mesma pista que o “quarteirão cultural” WOW e dos consórcios do Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau e da The Fantastic World of the Portuguese Sardine, ou seja, na pista das tradições inventadas e das denominações apropriadas. Diria que, em certos aspectos, o Bolhão é tanto um mercado de frescos como o WOW é um museu. A dado momento, terá ocorrido um curto circuito que nos trouxe até este triste equívoco, a uma instituição em crise de identidade. Não é exatamente um hibrido entre um mercado tradicional e um produto turístico, mas um mercado de frescos parasitado por um corpo estranho que tende a crescer e a sufocar o corpo hospedeiro.
O meu ponto de vista é que nada disto é por acaso, mas foi antes procurado, programado e cuidadosamente planeado. O que o Bolhão é hoje é exatamente aquilo que era o que os seus promotores tinham em mente. Recuemos um pouco no tempo:
Uma das operações que imagino de maior complexidade em todo este processo de reabilitação do mercado, terá decorrido da necessidade de se proteger e preservar in vitro os comerciantes históricos num mercado provisório instalado a poucos metros do Bolhão, na cave de um centro comercial. Foi a solução possível porque uma das premissas terá sido a de assegurar, durante o período de obras, que a componente humana do mercado continuasse a laborar dentro da mesma geografia para não romper a relação dos comerciantes com o lugar e com os seus clientes. Esta medida temporária e necessária transformou-se num autêntico programa de requalificação dos profissionais, nomeadamente no âmbito das regras de higiene e segurança alimentar. Mas não só. Durante os 4 anos e meio que durou a obra de reabilitação do edifício, os próprios vendedores entraram, de certa forma, em estaleiro. A analogia é abusiva mas mesmo assim permitam-ma: da mesma forma que o arquitecto no processo de reabilitação tem de fazer escolhas porque não é possível – e muitas vezes, nem sequer desejável – manter todo o preexistente, promovendo demolições pontuais de elementos dissonantes de forma a fazer vir ao de cima aquilo que ele interpreta como sendo o original e genuíno, também este exercício de preservação dos comerciantes implicou escolhas, uma espécie de trabalho de edição ou, se preferirem, de curadoria. Disciplinou-se a atividade, tipificando de antemão os produtos que cada um iria passar a vender, evitando um processo de canibalização interna potenciado por eventuais sobreposições da oferta. A Câmara passou então a ditar de forma mais rigorosa o que cada banca poderia ou não poderia comercializar.
O comerciante do Bolhão é reinterpretado de maneira a enquadrar-se num projecto em que, de certa forma, já não serão apenas comerciantes. São essencializados como personagens-tipo com os quais se passará a paisagem do lugar em construção. A campanha do natal de 2016 é disso mesmo exemplar. A peixeira, o talhante e os vendedores de fruta, hortaliças e bacalhau são catapultados para mupis espalhados por toda a cidade. Tratou-se de uma campanha publicitária que procura promover as compras no Bolhão (provisório), mas que num segundo plano é também uma campanha publicitária à própria operação de reabilitação em curso e, logicamente, uma campanha de propaganda da câmara. Não são atores ou figurantes mas, de algum modo, os comerciantes são retratados cuidadosamente como se o fossem, isto é, como se fossem atores. Há aqui uma ascensão simbólica: as fotografias não representam indivíduos, mas comerciantes que, paradoxalmente, representam o papel de comerciantes. Se, por um lado, este exercício publicitário pode ser lido como um caminho para a tomada de consciência de si e de reconstrução autoestima debilitada (não esquecer situação precária em que durante tanto tempo habitaram o Bolhão à beira do colapso, bem como a situação de deslocados num mercado improvisado na cave de um shopping) através da exposição mediática e romantização da atividade, por outro lado, quando se olha para aquelas imagens tão encenadas ficamos com a clara impressão de que estes comerciantes «se não existissem, teriam de ser inventados» porque servem como uma luva às conveniências da estratégia de comunicação. Há uma clara apropriação da imagem destas pessoas para a partir daí se construir uma narrativa sobre o lugar que permita legitimar tudo o resto que vai acontecer nesse mesmo lugar.
Há qualquer coisa naquelas fotografias que faz lembrar o trabalho de um mau arquitecto (ou de um arquitecto ingénuo, se preferirem apesar de não serem a mesma coisa) que numa obra de reabilitação de um edifício opta por preservar um elemento arquitectónico do edifício a que se propõe demolir apenas pelo seu valor pitoresco. E assim, surgem à vista, numa espécie de streptease exibicionista as paredes de pedra ou de tabique que originalmente estariam e deveriam estar vestidas de reboco, na tentativa de criar um certo pitoresco local de tão agrado dos olhos estrangeiros, mas absolutamente exótico para quem esteja familiarizado com as convenções da arquitectura histórica local. Esta invenção do pitoresco faz-se tendo-se em vista a perspectiva do outro que de outra maneira nem se aperceberia da peculiaridade de um tabique ou da beleza do granito. É que não basta estarem lá, correctamente preservadas. O prédio tem de ser esventrado e as entranhas expostas, ostensivamente exibidas. A singularidade é traduzida em pitoresco. Este carácter artificioso também está presente nas fotografias. Os comerciantes são retratados munidos dos elementos (a couve, o alho, a polvo, o bacalhau, o frango…) que conferem à composição uma qualidade de pitoresco. É já todo um programa que se desenha.
Há um certo risco em se cair num cenário de ópera em que as características dos personagens e do cenário são destacadas de forma a torna-las evidentes e manobráveis para efeitos da economia da narrativa. Personagens e cenários demasiado parecidos com a vida real e, portanto, complexos, emperraria o fio da estória ou, como agora se diz, da experiência. A experiencia de um prédio histórico reabilitado no contexto de uma economia turística implica uma certa dose de efabulação e fantasia. Assim, em muitas obras de reabilitação encontramos um léxico simplificado: o soalho de pinho, as asnas à vista com aproveitamento do vão do telhado, a invenção de trapeiras e as já citadas paredes de tabique e pedra à vista. No fundo, como se de uma cenário de um filme de animação blockbuster se se tratasse. É com este léxico empobrecido que se conta a estória da cidade ao consumidor internacional. Não consigo deixar de olhar para as fotografias dos comerciantes sem estabelecer automaticamente a analogia com a reabilitação dos edifícios, no sentido em que há ali qualquer coisa de autenticidade artificialmente criada por um processo de simplificação que permite ao consumidor pouco familiarizado com a cultura local, descodificar os agentes e assimilar sem esforço a narrativa que lhe é proposta. É esse o efeito do pitoresco.
É evidente que não se pretende dizer com isto que a preservação dos comerciantes – ou daqueles que que preferiram ou puderam escolher ficar – tenha sido uma decisão errada. Bem antes pelo contrário. Não seria compreensível e aceitável se do processo de reabilitação do mercado resultasse a exclusão dos comerciantes históricos, muitos deles tendo dedicado uma vida inteira aquela atividade e sendo reconhecidos pela população local como um símbolo da própria comunidade. Nunca é demais lembrar que tal não estava assegurado em todas as soluções apresentadas por executivos anteriores, nomeadamente na proposta apresentada durante o mandato de Rui Rio. A questão é que estamos num jogo duplo em que os comerciantes não só providenciam legumes, queijos, azeitonas, pão, peixe, carne, flores, etc… mas também o “boneco”, a imagem legitimadora de uma operação que vai muito para além deles próprios porque o Bolhão é hoje, sobretudo, um ativo capturado pela indústria turística. No fundo, deixaram de ser o centro do mercado e passaram a ser um acessório etnográfico de uma construção conceptual erigida segundo um modelo de negócio assente na venda a retalho de experiências padronizadas. Em suma, o negócio é mais entretimento de experiência que alimentação e o papel dos comerciantes históricos, é o de embrulhar o produto numa tipicidade que os menoriza e faz pouco da sua própria história.