
PARTE I: SOUVENIRS HÁ MUITOS.
Numa tarde qualquer de outubro, seis meses depois dos acontecimentos do Bonfim e um mês após o episódio do esfaqueamento de dois imigrantes e, já agora – dois meses antes da polémica rusga no Martim Moniz, em Lisboa, o presidente da Câmara Municipal do Porto resolveu eleger as lojas de souvenirs como inimigo nº 1 da cidade. Convém dizer que não estamos a falar de toda e qualquer loja de souvenirs. Não estamos a falar, por exemplo, da omnipresente cadeia espanhola Ale-Hop (que veio substituir a mercearia mais antiga da cidade), nem da miríade de negócios locais ou franchisings que vão desde das latas de sardinha às camisolas do FCP. Não. As únicas lojas de souvenirs que perturbam o sono do edil são as lojas exploradas por imigrantes e não faz a coisa por menos acusando-as de lavar dinheiro e de traficar seres humanos, apresentando como evidência o preço dos ímans a 50 cêntimos, quantia judiciosamente considerada pelo autarca como insuficiente para pagar a renda em zonas nobres da cidade. Eu próprio também não sei como vender meias com padrões de azulejos paga uma renda de uma loja, mas também não me ponho para aí a especular quanto à honorabilidade dos comerciantes. Mas isso sou eu, simples cidadão. Não estou no lugar de responsabilidade de um líder eleito, pelo que evito lançar o anátema sobre 180 lojas sem saber, de facto, o que lá se passa. Também não me vejo a esticar a corda, a ver até onde esta aguenta com a tensão racial. Deixo isso para quem sabe e para quem foi democraticamente eleito para governar todos os portuenses, incluindo os novos portuenses.
Sejamos justos. Rui Moreira tem toda a razão em estar preocupado com este enorme souk em que se transformou a Baixa em que porta sim, porta sim existe um negócio qualquer vocacionado para a ordenha de turistas. A maior banca deste souk até é essa turist trap a que chamamos, por força da inércia da memória e por estratégia de marketing, de Mercado do Bolhão, um equipamento municipal. Depois há ainda toda uma cacofonia de mercados disto e daquilo ocupando o espaço público com bugigangas e pseudo-artesanato, há as lojas de multinacionais especializadas em toda a espécie de quinquilharia que não interessa nem ao menino Jesus, há o melhor pastel de nata do universo e a praga da comida turistificada, há o zum zum das motorizadas da Uber que, como moscas, circulam incansáveis por todas as ruas e ruelas da cidade, há os hotéis, ALs e sabe lá o que mais, há os quiosques transformados em falsos postos de informação turística e que apenas vendem voltinhas no carrossel dos bus turísticos. Há tudo isso e tudo o resto. No meio desta turba de vendilhões que tomou conta da cidade, Rui Moreira tem a extraordinária capacidade de apontar cirurgicamente o dedo a alguns deles – e apenas a alguns deles – distinguindo-os dos outros e chegando ao ponto de fazer zoom sobre os preços praticados para denunciá-los como um perigo para as famílias e para a economia da cidade. Talvez tenha uns óculos especiais.
Como qualquer outra pessoa, sou fã de regras, sobretudo na gestão da coisa pública. As cidades devem ter uma palavra a dizer quanto ao tipo de atividade económicas desenvolvidas em zonas sensíveis. Ao longo da história e um pouco por todo o lado sempre o fizeram. Seja por razões sanitárias, seja por razões associadas a horários de funcionamento, seja para garantir o normal funcionamento da cadeia de abastecimento e suporte da comunidade residente. Parece-me bem que se preservem serviços essenciais como farmácias, bancos e padarias, que se protejam estabelecimentos de evidente interesse histórico e patrimonial, que se controle o horário de funcionamento de algumas atividades que possam entrar em conflito com o descanso de residentes, que se crie um zonamento para determinadas atividades e que se criem quotas máximas para negócios que se arrisquem a se tornarem hegemónicos pondo em causa a diversidade e complementaridade típica da vida urbana. O que não me parece nada bem é que se reclame o (legítimo) direito de condicionar o licenciamento da atividade comercial à origem racial do comerciante. Tem por isso, a meu ver, razão Rui Moreira quando reclama pelo fim do licenciamento zero, mas absolutamente nenhuma se estas regras se aplicarem apenas aos paquistaneses, indianos, bengalis, chineses e outros. Se vamos criar regras, estas que se apliquem à totalidade do ecossistema, a começar pelos hotéis.
PARTE II: UMA CORNUCÓPIA DE HOTEIS
A reivindicação dos poderes de regulamentação esmorecem, precisamente, quando subimos na cadeia alimentar do ecossistema. Perante os números avassaladores da quantidade de hotéis em marcha no pipeline de licenciamento, a posição da câmara municipal é bem mais comedida. Em finais de 2023, anunciava-se que o Porto contava já com 148 hotéis e 98 vinham a caminho durante 2024. No início de 2025 anunciam-se 122 novos hotéis em fase de licenciamento, sendo que 63 já se encontram em fase de obra. Longe vão os tempos em que o presidente executivo do Conselho de Administração da Porto Vivo SRU então em exercício, Álvaro Santos, alertava para o número excessivo de hotéis. Estávamos em 2014. Passados dois anos, já algo conformado, limita-se a anunciar que vêm a caminho mais 11 hotéis, já sem tecer quaisquer considerações quanto aos perigos da excessiva concentração do investimento neste negócio. Este conformismo parece ter tomado conta da própria câmara. Os argumentos apresentados por Rui Moreira contra a proposta de uma moratória de novos hóteis foram os seguintes:
- Não há hotéis a mais, bem antes pelo contrário, há hotéis a menos;
- As externalidades do turismo são essencialmente positivas;
- Não é aceitável uma «regra proibicionista».
- A estes argumentos junta ainda Pedro Baganha o de que tal medida também não seria possível por falta de «enquadramento legal e jurídico».
O argumento das «mãos atadas» acabou de ser reiterado na última reunião do executivo. Este argumentário padece de alguma fragilidade. Regulamentar qualquer atividade pode implicar a imposição de certos limites, sem que tal seja sinónimo de alguma forma de proibicionismo (veja-se, por exemplo, o caso do regulamentação dos artistas de rua). Ao fazer equivaler «regulamentação» com «proibição» está-se a forçar a nota, caricaturando a proposta. Para além disso, não é de todo verdadeiro que não exista enquadramento legal que permita às autarquias definir limites para as diversas atividades económicas. Mas admitindo que efetivamente não existe, então compete aos representantes eleitos reclamar junto do poder legislativo a criação destas ferramentas legais para que as autarquias possam regulamentar essas atividades. Tal como, de resto, o próprio Rui Moreira fez de forma muito veemente e dramática a propósito das lojas de souvenirs. Os argumentos são fracos e, mais, nem sequer são consensuais. Veja-se, por exemplo, o testemunho do Presidente do Turismo do Porto e Norte de Portugal que considerava em 2024 existirem hotéis em número mais do que suficiente no Centro Histórico. E quanto às externalidades, não é de todo consensual que sejam essencialmente positivas. Recordemos que o próprio Presidente da Câmara Municipal do Porto considera que a atividade turística pode gerar externalidades negativas tais como tráfico de seres humanos e a lavagem de dinheiro.
Há uma dissonância cognitiva quanto ao ecossistema do turismo que é revelada pela por estas polarizações internas ao próprio discurso dos responsáveis políticos a nível local: o turismo tem essencialmente externalidades positivas, excepto se estivermos a falar de lojas de souvenirs porque aí são todas muito más. Somos contra regras proibicionistas contra os hotéis mas queremos limitar a expansão das lojas de souvenirs. Não temos (e, pelos vistos, nem queremos) enquadramento legal para limitar a proliferação de hotéis, mas exigimos que se acabe com o licenciamento zero das atividades comerciais porque queremos regulamentar. Os estrangeiros são bons para a economia da cidade, excepto se forem imigrantes. Há falta de hotéis ou talvez haja hotéis a mais. Não se sabe lá muito bem. O óbvio, aquilo que se nos cola aos olhos, é que as lojas de souvenirs e os hotéis são ambos espécies que dependem do ecossistema turístico, o qual constitui uma unidade indivisível. Se vamos pensar em regras – e é bom que pensemos urgentemente nelas – temos de pensar de forma integrada, isto é, adoptar regras articuladas e consistentes a todos os intervenientes por igual.
Sejamos claros: o problema das lojas de souvenirs não é um problema de imigração ou de segurança, mas da hegemonia que turismo exerce sobre cidade. Regulamentar a atividade comercial é apenas tratar de uma parte dos sintomas, ignorando ostensivamente a causa. Se tivéssemos uma cidade com um equilíbrio entre o número de residentes e o número de turistas, se tivéssemos uma economia diversificada e não sequestrada por um único sector, certamente que muitas destas lojas seriam ocupadas por outro tipo de atividades e a paisagem urbana muito mais diversificada e apelativa.
PARTE III: A CIDADE PARA INGLÊS VER
Como já tinha referido noutra oportunidade, vinha aí a caminho uma operação de tematização geral da imagem da cidade para fins puramente turísticos promovida pela própria Câmara Municipal. E aqui está ela: «Estratégia de base para a dispersão dos fluxos turísticos do destino Porto e a criação de quarteirões no concelho do Porto» [antes de continuarmos, sugiro uma pausa para consultarem o documento; vão lá que eu espero].
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O ponto de partida desta «estratégia» (acho que não tem mal chamar-lhe isso dado que se identifica a ela própria como tal) é a constatação do facto de haver um «excesso de pressão turística» em algumas zonas da cidade. Só pelo reconhecimento deste facto, o documento já tem algum valor porque contraria a atitude negacionista dos responsáveis autárquicos. Todavia, ao contrário do que seria de esperar, a proposta não vai no sentido de regulamentar a atividade turística mas, bem antes pelo contrário, aponta para a expansão do turismo por todo o território. A pobre língua portuguesa é aqui sujeita às mais cruéis sevícias, torcendo a semântica para se não parecer que se está a dizer o que realmente se está a dizer. Atentemos, a titulo de exemplo, a dois desses conceitos:
- 1. «Dispersão» não significa aqui espalhar em diversas direções o que estava junto, mas acrescentar e aumentar, preenchendo os vazios, ou seja, os territórios ainda fora do radar. O que na verdade onde se lê «Dispersão» deve ler-se «Expansão». O conceito de «Dispersão» implicaria reduzir a densidade num ponto, espalhando-a por um território muito mais vasto. Ora, não é nada disso que é proposto. Não há qualquer medida no sentido de conter e muito menos diminuir a atividade turística, até porque o executivo tem rejeitado sistematicamente toda e qualquer proposta de moratória de licenciamento de novos hotéis.
- 2. A «sustentabilidade» amiúde convocada ao longo do documento tem o valor de conceito talismã, isto é, um conceito sem referente ou, se preferirem, uma palavra sem conteúdo mas, mesmo assim, um recurso discursivo valioso. Afinal, quem é contra a sustentabilidade? Ninguém, como é óbvio. Trata-se de um conceito plenamente consensual e suficientemente vago para lá caber meio mundo, mas mesmo assim o suficientemente mobilizador para legitimar a decisão política de converter toda a cidade num produto turístico. Pergunto onde estará a sustentabilidade, no sentido rigoroso da palavra, quando se pretende expandir a atividade turística a todas as freguesias e lugares, mantendo e ampliando a pressão excessiva já existente no Centro Histórico/Baixa? A mim parece-me claro que as políticas expansionistas são tudo menos sustentáveis. Havendo um desequilíbrio, haveria que contrabalançar os pratos e não sobrecarregar um deles.
O plano propriamente dito é relativamente simples e replica uma estratégia de dispersão do fluxo turístico já seguida noutras cidades como Amsterdão (há mais de 10 anos), Copenhaga e Barcelona. Pegando neste ultimo exemplo, em contraste com a “estratégia” portuense que se fica pela criação de bairros temáticos, ou seja, por uma única linha de actuação, o plano de gestão catalão é verdadeiramente estratégico porque integra 12 linhas de actuação que são planeadas e geridas em conjunto, a saber: gestão de espaços urbanos, fiscalidade, mobilidade turística, alojamento, segurança, sustentabilidade, digitalização, desenvolvimento económico e retorno social, estratégia territorial, promoção, conhecimento e governança. Ora, no nosso caso ficamo-nos apenas pela estratégia territorial e mesmo assim, reduzindo-a à óptica exclusiva de destino turístico, simplificando-a sob a forma de um plano de “dispersão” dos fluxos. Em que consiste realmente a estratégia? Dividir a cidade em 8 “quarteirões”, sendo que é atribuído a cada um destes uma identidade temática que se supõe valorizá-lo enquanto destino turístico:

Qualquer portuense ou qualquer outra pessoa que conheça razoavelmente bem a cidade não deixará de ler esta lista sem abanar a cabeça ou até mesmo soltar alguma gargalhada ou impropério. Nada disto parece fazer grande sentido. O zonamento temático não tem lá grande aderência à realidade. A ser levado a sério, seria algo que iria na direção oposta da ideia de «cidade líquida» de Paulo Cunha e Silva, recordam-se?:
«A cultura expande-se e derrama-se sobre os territórios e a população, dissolvendo preconceitos e lugares-comuns. Toda a gente é convocada para a grande aventura da cidade».
Talvez não seja exatamente a mesma cidade. Talvez coexistam duas cidades que ocupam em simultâneo o mesmo território: a cidade vivida e a cidade para inglês ver. Nada contra. De certo modo existem muitas cidades dentro de cada cidade. O problema é que a esquizofrenia começa quando é a própria câmara municipal a gerir o território em função do olhar do turista. Temos duas alternativas. Uma é encolher os ombros e reduzir estas estratégias a mero palavreado que, quanto muito, gerará, para indiferença geral, incluindo dos próprios turistas, mais uma campanha de comunicação. Faz-se a campanha, cria-se mais um website em inglês, plantam-se um mupis, imprimem-se uns flyers, talvez se organizem uns eventos mais ou menos ad hoc, as empresas consultoras contratadas e assessores recebem a sua quota parte e a vida continua, como sempre. Outra alternativa é levarmos a sério este tipo de propostas e acreditar que estas têm como objectivo moldar o território. Neste cenário, teremos a gestão da cidade condicionada pelas urgências e necessidades de um sector de atividade económica que se afirma cada vez mais como um sector hegemónico. Atendendo ao ponto crítico a que se chegou na Baixa e Centro Histórico, será sensato levarmos a sério esta estratégia. Há, de facto, a vontade e a capacidade de moldar o território através de uma espécie de engenharia social. Este plano é um takeover do resto da cidade pela indústria turística.
É evidente que o que documento propõe é uma série de oito narrativas para as oito zonas do Porto. Estas narrativas, por mais extravagantes que possam parecer em alguns casos, contribuem para a modulação de percepção que os outros têm sobre a cidade mas também sobre a própria forma como os residentes percepcionam a sua própria a cidade. Antes de mais nada, vêm-se, assim de repente, sem ter sido auscultados figurantes de uma narrativa que não está a ser escrita por eles. Analisando com algum pormenor estas narrativas podemos com alguma facilidade identificar alguns pontos problemáticos, pontos em que parece haver um entorse da memória do lugar de forma a caber dentro da narrativa. Veja-se o caso do Bonfim, o quarteirão descrito como o lugar da juventude, da arte e do empreendedorismo. Compreensivelmente, dentro desta narrativa não é conveniente que seja lembrado que o Museu Militar também foi a sede da antiga PIDE/DGS e que representa um dos lugares de memória da ditadura do Estado Novo e da luta antifascista. Aliás, aproveito para lembrar que as propostas para transformar este edifício em Museu da Resistência têm sido sistematicamente ignoradas. Esta memória destoa da narrativa proposta. Pode ser incomodativa para a sensibilidade turística avessa a estas coisas. Vai daí, é completamente obliterada. Tal como é obliterado o passado industrial do Bonfim e Campanhã. Campanhã aparece aqui trasvestida num idílio semirrural passando por cima de toda a carga do passado industrial e operário da freguesia. Diria que foi uma identidade imaginada em modo à vol d’oiseau ou, neste caso, a partir do Google Maps.
Nesta cidade imaginada por uma consultora qualquer, os residentes são paisagem que se destina a ser consumida de acordo com um guião em formato de destino turístico. Não interessa a memória historicamente fundamentada, não interessa o lugar. O que interessa é que encaixe na narrativa e que cumpra o papel de adereço. Uma situação semelhante à dos transeuntes das passagens descritos por Walter Benjamim:
«Eles são observados a partir das janelas, mas não podem ver o que há por detrás delas».
O turista move-se sob um manto da invisibilidade que lhe é conferido pelo anonimato, pela origem incerta e pela transitoriedade. Quem é aquele pessoa que nos olha e nos fotografa como se fossemos uma parte da paisagem? Não sabemos e nunca saberemos quem ele é. O nosso papel não é observarmos mas sermos observados. Fazemos parte da experiência que alguém empacotou e vendeu a alguém que a consumirá num weekend break entre os pastéis de nata e uma ida ao Bolhão de copo na mão. A câmara propõe a substituição da “Antiga, Mui Nobre, Sempre Leal e Invicta” cidade do Porto por uma cidade imaginária com as janelas viradas para os residentes-paisagem. De certa forma, quer queiramos quer não somos todos ativos de uma indústria omnívora. Uns entram no jogo e vendem ímans (ou algo que o valha). Outros, nem por isso.