Praça da República

O projecto de reabilitação do Jardim da Praça da República, como qualquer outra intervenção na cidade, não reúne unanimidade, o que é normal porque a falta de consenso e a divergência de pontos de vista é um sinal de saúde cívica e de envolvimento da população nas pequenas questões da cidade. Se alguma coisa a pandemia Covid-19 demonstrou é que as interações sociais desempenham um papel profundamente estrutural no desenvolvimento psicossocial e na manutenção do bem-estar emocional dos indivíduos. Os largos meses de isolamento social demonstraram o quão valioso é o espaço público em ambientes urbanos. Os jardins, as praças e as ruas, sobretudo aquelas que são arborizadas, são o território comum da comunidade. A determinado momento, no rescaldo da pandemia, na euforia possível de quem chegou mais ou menos ileso ao fim do arco-íris, alimentou-se a expectativa de que passaríamos a olhar de forma diferente para estes espaços, que as ruas seriam humanizadas e devolvidas à comunidade. No Porto, ensaiaram-se experiências muito interessantes como o encerramento aos domingos do trânsito na Avenida Rodrigues de Freitas para permitir a sua apropriação pelas famílias, vizinhos e crianças. Os mais optimistas poderiam até julgar que estávamos num ponto de viragem nos modos de se fazer cidade. Só que, uma vez passado o alívio inicial, uma vez ultrapassada a fase do «nada será como antes», a cidade nova acabou por não vir. Enterrámos a experiência traumática da pandemia e com ela todas as lições juntamente com as boas intenções. Digo isto porque este projecto foi uma oportunidade perdida de envolvimento da população. Ninguém questionou os utentes, vizinhos e a comunidade local sobre o que queriam daquele jardim. A intervenção sobre o espaço público não deveria ocorrer sem o envolvimento da população e dos principais interessados. Era possível compatibilizar as especificidades técnicas do projecto com um modelo participativo. Creio que ancorar todo um projecto de um jardim público na memória histórica sobre o exercício do poder institucional (político e militar), deixando de parte as expectativas e os desejos da comunidade, só quer dizer que os decisores esqueceram muito rapidamente a importância que os espaços verdes urbanos ganharam pela nossa experiência recente. Creio que será mais ou menos óbvio afirmar que os utilizadores daquele jardim prefeririam um espaço comum que fosse pensado nas suas necessidades e não tanto numa reconstituição da geometria gerada pelos exercícios militares que lá ocorreram no passado. 

Recomendo que assistam à reunião do executivo do passado dia 6 de novembro, onde a partir da hora 01:03 a arquitecta paisagista Teresa Marques apresenta o projecto e responde às questões dos vereadores. Retiro aspectos positivos:

  • A própria iniciativa em reabilitar o jardim, cujo abandono era tão surpreendente quanto escandaloso;
  • A preservação de alguma da vegetação existente e, sobretudo, a introdução de 13.000 arbustos e 150 árvores;
  • O respeito pelos percursos de atravessamento espontâneo, nomeadamente pela reintrodução de diagonais;
  • A fundamentação na memória histórica do lugar.

No entanto, analisando criticamente a solução proposta, encontramos vários pontos de flagrante fragilidade. As praças-jardim devem conciliar três grandes funções: 

  • Função ambiental e ecossistémica; 
  • Função social; 
  • Função urbana.

Deixemos de parte a primeira função porque parece estar assegurada (não obstante, seria útil se tivessem divulgado quais as espécies selecionadas e o plano de manutenção dos espaços verdes) e passemos diretamente aos pontos seguintes.

A função social da Praça da República é comprometida pela premissa inicial que não a assume como um local para se estar, como um lugar onde se desenvolvem várias atividades em simultâneo e que poderiam potenciar o encontro entre gerações, entre residentes e visitantes, entre diferentes classes. A praça é desenhada como um espaço que serve apenas para ser atravessado. Não é um sítio de paragem. Isso é perfeitamente óbvio pela profusão de caminhos que rasgam a praça de norte a sul, de leste a oeste e  que duplicam as diagonais com uma espécie de sub-diagonais de utilidade pouco evidente. 

O que se pretende é muito claro: a praça, tal como o vereador Filipe Araújo muito bem sintetiza, é um atravessamento. Talvez por essa razão também se limitaram as condições para que ali possa acontecer alguma coisa. Os bancos de jardim com costas são manifestamente insuficientes. Um murete de granito não é digno, não é confortável, não convida à permanência. Este jardim não é para velhos (a coesão social também passa por aqui, certo?). Nem para os sem-abrigo. Segundo a mesma lógica, não se criaram condições para o convívio. Não vejo por que razão não poderá haver mesas para as épicas suecadas dos reformados ou para se fazer um lanche. Particularmente chocante é a ausência de um parque infantil, sendo que a resposta da projectista a esta questão é demasiado absurda para se levar a sério: 

“Os miúdos poderem saltar dos muretes para o chão, dar cambalhotas, correr. Não delimitar. A brincadeira aqui pode ser mais livre e espontânea, em condições de segurança.” 

Não há um parque infantil porque o objectivo é toda a praça funcionar como um parque de brincadeiras? O Porto não é para velhos e, pelos vistos, também não é para crianças. Em todo o município há uma enorme carência deste tipo de equipamentos, mas na zona mais central essa falta é ainda mais gritante. Os poucos que existem são pequenos, de má qualidade e sobrevivem quase sem manutenção. Veja-se, por exemplo, o pequeno parque infantil Soares dos Reis, no Bonfim. Apesar de pequeno e deteriorado por falta de manutenção, está sempre cheio, juntando no seu entorno jovens casais, avós e crianças do bairro. O poder de atração deste tipo de espaços é enorme e funciona como um equipamento âncora, convidando à permanência, ao convívio e ao desenvolvimentos de laços de confiança e solidariedade entre vizinhos. Não são os jardins, por si, que fazem isto, mas os equipamentos que lá se colocam. Dizer que todo o jardim será um parque infantil, é a mesma coisa que dizer que não há parque infantil. 

Quanto mais diversificadas forem as atividades dentro de uma praça-jardim, melhor desempenhará a sua função social. No entanto, não está previsto, por exemplo, um espaço de esplanada. Não haveria sequer necessidade de se edificar uma cafetaria porque essa função pode ser perfeitamente desempenhada por estruturas móveis de street food, desde que duas condições estivessem asseguradas: espaço para esplanada e instalações sanitárias. Não deixa de ser surpreendente que nenhum vereador tenha questionado a ausência de instalações sanitárias públicas. Em abono da verdade, temos de reconhecer que também não fazem falta se a ideia é fazer da praça um sítio de passagem. 

Do ponto de vista da função urbana, julgo encontrar aspectos positivos na proposta. Digo “julgo” porque este aspecto nem foi abordado na apresentação feita pela arquitecta paisagista e nem tão pouco foi questionado pelos vereadores. A apreciação possível é feita através dos renders disponibilizados. Assim, destaco:

  • introdução de novas passadeiras a nascente e no alinhamento da Rua Mártires da Liberdade; 
  • alargamento e arborização dos passeios que emolduram a praça;
  • prolongamento da arborização pelas ruas da Regeneração e da Lapa (quanto aos restantes arruamentos, nomeadamente, as ruas da Boavista, Almada e Gonçalo Cristóvão não se consegue perceber se se prevê alguma intervenção). 

Estes três elementos (mais passadeiras, arranjo da moldura urbana da praça e prolongamento da arborização pelas vias que dela derivam) são fundamentais para a boa ancoragem da praça na estrutura urbana da cidade. A arborização das ruas adjacentes, por exemplo, prolonga o efeito de jardim com todos os ganhos a nível do bem-estar e do conforto, funcionando ainda como um fio de Ariadne marcando o caminho até à praça. Já o alargamento e arborização dos passeios do lado das frentes edificadas que emolduram a praça, potenciam a instalação de um conjunto de serviços complementares, como restauração e esplanadas. Desejaríamos todos nós, no entanto, que a função habitacional fosse, de alguma forma, privilegiada. Alguém na sessão de apresentação levantou a questão da segurança. Pois bem, a melhor forma de tornar os espaços seguros é pôr lá pessoas. Pessoas que usem efectivamente o jardim, pessoas que possam estar, por mero acaso, nas esplanadas, mas sobretudo pessoas que habitem os prédios que emolduram a praça, que sejam os olhos permanentemente sobre o espaço público e que o tomem, de certo modo, como o prolongamento da sua própria casa. 

Persiste, ainda, uma dúvida sobre a questão do trânsito e esta dúvida não é um pormenor porque tem um carácter decisivo. Não é claro o que se pretende para o trânsito que por ali passa. A manter o actual perfil de três (e até quatro!) vias com tráfego intenso e a velocidade excessiva, a praça continuará a ser uma ilha. Podem acrescentar mais duas passadeiras, mas o atravessamento continuará a ser inseguro e desconfortável. Continuará a cortar a relação da praça com a frente urbana envolvente, comprometendo os aspectos positivos acima mencionados. Seria desejável reperfilar as vias de forma a induzir a redução de velocidade e limitar a velocidade de forma drástica. Recentemente, a CMP implementou em várias artérias do Centro Histórico a regra dos 20km como limite máximo de velocidade. Em muitas destas artérias, a medida é redundante porque pela sua configuração e características nem sequer é possível atingir tal limite. É como declarar que água do Douro é húmida ou salgada a água do mar da Foz do Porto. Esse tipo de medidas, como a limitação de velocidade a 20km e, eventualmente, a criação de zonas de coexistência de tráfego, seria relevante em situações como a da Praça da República. Se não for este caminho, então para que servem todos os atravessamentos que retalham o jardim? Facilita-se o atravessamento dentro do jardim para chegar onde? Esta incongruência, quanto a mim, compromete decisivamente o projecto. Se não se encarar com coragem a questão do trânsito, isto significa que vamos gastar 1.5 milhões de euros numa ilha no meio do trânsito.

PS: Sobre este tema, à vereadora Rosário Gâmboa apenas lhe ocorreu levantar a questão bizantina da “centralidade da palmeira”. Fico decepcionado e embaraçado. Oposição crítica precisa-se. 

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