Empresas pouco municipais

Não sei se o mesmo fenómeno se passa noutros concelhos, mas verifico que as empresas municipais do Porto actuam frequentemente de forma descoordenada entre si e com fraca ligação aos serviços autárquicos. Sempre fui crítico da própria existência de empresas municipais, mas fui aceitando o argumento de que a burocracia portuguesa obriga a recorrer a estruturas juridicamente independentes da autarquia para evitar dificuldades graves na gestão corrente da actividade. Já é tempo de optar pela solução “limpa” para o problema – eliminar os encravamentos burocráticos.

Fui ontem fazer uma intervenção na Assembleia Municipal do Porto a este respeito, exemplificando com dois casos concretos.

O primeiro caso conheço muito bem e estou directamente envolvido nele. A história começa em 2018, quando foi concretizada a venda de um enorme portfólio de imóveis dispersos por todo o país no valor de cerca de 425 milhões de euros. O vendedor foi a seguradora Fidelidade e o comprador foi o fundo multinacional Apollo através de 4 sociedades-veículo criadas em Portugal para o efeito. Num dos imóveis que se localiza no Porto, é desde 1956 inquilina residencial uma tia minha, agora com quase 96 anos mas felizmente em boa saúde.

Tive conhecimento com antecedência de que se preparava essa volumosa transacção e por isso fui seguindo o assunto com muita atenção. Ela acabou por ser foi feita à pressa para fugir à mudança legislativa que veio depois e que teria impedido a sua realização nestes moldes. Comprador e vendedor invocavam uma suposta natureza “una e indivisível” do negócio que justificaria ser necessário comprar a totalidade do portfólio (os 425 milhões de euros) por quem quisesse exercer o direito de preferência quanto a qualquer um dos imóveis.

Contudo, essa argumentação tinha inúmeras falhas jurídicas e de lógica, até porque a pressa impediu uma “blindagem” adequada dos formalismos da transacção. Investiguei os detalhes do negócio e entreguei ainda em 2018 à Câmara do Porto documentação oficial comprovativa dessas falhas que permitiria ao Município colocar acções de preferência quanto aos imóveis que quisesse adquirir. Recomendei que o fizesse pelo menos no caso concreto de um muito interessante na Rua de Cedofeita, com 3000 m2 de área bruta coberta, o tal onde reside a minha tia.

De facto, a Câmara decidiu recorrer ao tribunal no final de 2018 e acabou por conseguir, já em 2022, uma transacção judicial, sendo o Município do Porto formalmente proprietário do imóvel desde Setembro de 2022. A primeira vistoria ao imóvel por parte da autarquia foi feita a 25 de Janeiro de 2023, acompanhada por mim. A sua gestão é da Porto Vivo desde 22 de Maio de 2023. Apesar da brutal demora do processo, tudo parecia estar a correr bem até aqui.

Apesar de o ter adquirido, a Câmara do Porto pouco conhecia sobre o imóvel que, na realidade, são 2 edifícios contíguos e em estado muito diferente de conservação. Alertei a Câmara para a existência de outra inquilina idosa (que a autarquia ignorava) que vivia com o filho deficiente na parte mais degradada do imóvel, em miseráveis condições de salubridade. A pedido deles, auxiliei-os nos contactos com os serviços autárquicos e com a assistência social, tendo entretanto sido realojados conforme era seu desejo.

A situação da minha tia é bastante diferente. Nesta altura ela é a única inquilina do imóvel. O edifício onde se situa a habitação dela está em boas condições estruturais, apesar de precisar de significativa manutenção. É claro que a responsabilidade do Município do Porto só se inicia no momento em que se torna proprietário do imóvel, mas isso já aconteceu há ano e meio. Atendendo ao estado do edifício, a família não teve alternativa a não ser realojar temporariamente a minha tia num lar.

A Porto Vivo fez uma primeira intervenção no sentido de restabelecer o fornecimento de água (até isso falhou!), mas ela está longe de ser suficiente para que o apartamento se torne habitável. As canalizações internas estão muitíssimo degradadas. O cilindro não funciona. As ligações eléctricas estão muito sofríveis. Grande parte das caixilharias precisa de manutenção grande, pois está também em risco. Muitas das persianas (as originais de madeira, ainda) estão completamente podres, sem se poderem abrir. A madeira do chão está a apodrecer. Etc., etc. Falta também uma intervenção absolutamente fundamental nas partes comuns: um elevador a funcionar, pois actualmente está inoperacional e não é reparável. Além de tudo o resto que me dispenso agora de detalhar.

Não se vê lógica, nem económica nem social, em “remendar” um edifício com uma única inquilina, idosa, e deserto em toda a restante área. Como o conheço bem o imóvel e a zona envolvente, sugeri à Câmara e à Porto Vivo o seguinte:

  • que o edifício mais degradado, onde residia a inquilina já realojada e que está quase em ruína, seja reabilitado e destinado a habitação acessível com apartamentos de média dimensão (julgo que será essa a intenção da Porto Vivo);
  • que o edifício onde a minha tia arrenda um dos 4 apartamentos de 230 m2 constitua um projecto de natureza diferente, mais na linha do “cohousing” ou da habitação multi-geracional, e ofereci-me para o ajudar a implantar, quer como representante da única inquilina, quer como presidente de uma pequena cooperativa de habitação;
  • que seja demolida a parte da garagem que impermeabiliza o logradouro, transformando-o num jardim que pode ter ligação ao restante espaço verde no interior do quarteirão.

Em Fevereiro passado, a Porto Vivo concordou ser sensato desistir de uma reparação pontual, que seria insuficiente, no apartamento da minha tia. Contudo, pretende transformar este edifício de modo a ter dois apartamentos por piso, em vez de um. O apartamento dela, tal como todos os restantes, seria destruído. Para quê demolir o interior dos apartamentos originais, dos quais dois estão prontos a habitar pois já tiveram obras por iniciativa ainda da Fidelidade? Por que não restaurar, se se gasta menos e se tem resultados melhores? Que sentido faz replicar a oferta do mercado, quando há condições para ter intervenção social e dar novas respostas?

Afirma a Porto Vivo que a sua missão não abrange aspectos de natureza social e de criação de comunidade, procurando intervir a nível do edificado apenas dum ponto de vista mais técnico. Mas é precisamente por isso que a Porto Vivo falha. A Porto Vivo tem de estar alinhada com os objectivos do seu accionista, e seguramente que uma das missões do Município do Porto é garantir habitações adequadas aos munícipes idosos.

O segundo caso, com a Domus Social, conheço apenas através de uma notícia do Público de 11 de Abril e explica-se com uma transcrição de parte do texto:

É assim necessário mudar os formalismos de selecção. Deve ser dispensada esta exigência nos casos em que haja evidência inquestionável de que o requerente reside na cidade, seja em arrendamento clandestino, seja porque simplesmente não tem tecto.

Portanto, em resumo: é preciso que as empresas municipais, de forma integrada e coordenada com a Câmara, contribuam para a implantação das políticas autárquicas. Que a inércia e o desconhecimento não desbaratem a oportunidade de criar um projecto-piloto exemplar de formas contemporâneas de habitação colectiva na Rua de Cedofeita, nem deixem desamparado quem mais precisa de apoio.

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